quinta-feira, fevereiro 26, 2004

Cor – Estas coisas, regra geral, exigem um certo tempo de digestão, de pousio, até estarmos aptos para poder falar acerca delas. O problema é aquele bichinho, aquela comichão que nos impele a realizar a tarefa mais cedo do que o que seria o tempo de incubação ideal. Abdica-se de alguma precisão, pontaria, pureza estética, para pôr cá fora a criança mais cedo.

É verdade, não tarda faz um mês. E as reacções, que cedo se fizeram sentir em mim, esperneiam, dão coices com uma vontade doida de se materializarem em meia dúzia de parágrafos. Eis o resultado duma gestação medianamente inacabada:


A minha incapacidade de transposição de semelhantes acontecimentos para a minha própria existência sempre motivou aqueles comentários impressionados. Sinto um passo daqueles a milhares de distância do ponto onde me encontro agora, tal como o sentia há cinco, dez anos atrás.

Desnorteamento? Egoísmo? Infantilidade? Inaptidão? Medo? Talvez sim, em doses mais ou menos equilibradas e proporcionadas. Mas esta é a versão simplista. No meu modelo da realidade, tudo depende de timings precisos, de acasos, sortes e reveses da fortuna. De pequenos grandes acontecimentos que, de forma indelével, marcam definitivamente o caminho trilhado ou a trilhar. Depende também da vontade do momento. Podemos levar um cavalo até ao bebedouro, mas ele só abrirá a boca se tiver sede. E não se pode obrigar, nem sequer ensinar, ninguém a ter sede.

Para um pouco convictamente convencido pessimista como eu, é sempre bom romper a sucessão de dias cinzentos com um renovador dia de sol, luminoso e esperançoso. Ilumina os espaços obscuros, traz vida a partes ensombradas e adormecidas. A solução do problema parece surgir do nada, com a simplicidade com que todas as soluções nos fazem mostrar quão simples são e, simultaneamente, quão incompreensível é termos necessitado tanto tempo para a elas chegar.

No fundo, resta desejar acordar um dia com a garganta tão seca, sequiosa duma sede insaciável, de tal forma que não seja possível fazer outra coisa senão levar copos de água, uns atrás dos outros, à boca. E rezar a todos os santinhos que, em algum canto do universo que é aquele que conhecemos, haja alguém com a mesma necessidade em ingerir a mesma dose maciça de líquidos.

Não significa que as dúvidas não surjam. Será este o copo, o líquido que matará a minha sede? Meio mundo coloca a si mesmo esta pergunta todos os dias, enquanto tenta adormecer na cama à noite, enquanto coloca uma camisola sobre o corpo, enquanto se desloca na sua rotina diária, enquanto espera, enquanto desespera, enquanto recebe, enquanto dá, enquanto observa, enquanto se mostra. Enquanto, enquanto, enquanto…

Respostas talvez surjam um dia, o tempo o dirá. O risco de falhanço está intrinsecamente ligado a personalidades, carismas, idiossincrasias: cada qual calcule o seu da forma que lhe aprouver. A única certeza é de quem não arrisca não petisca, ou seja, que a ausência de risco não premeia com respostas, sejam elas as que queremos ouvir ou não.

Obrigado, Cristina e Duarte, por toda essa imensidão de cor.