segunda-feira, março 15, 2004

Há cinco anos atrás, este texto saiu-me directamente para o teclado depois duma deslocação à capital. Já tinha, obviamente, utilizado os transportes públicos lisboetas, mas só agora o começava a fazê-lo com regularidade.

«Queira auxiliar-me – Rotunda. Entro e sento-me. Este é daqueles novos em que as carruagens são abertas e podemos ver até ao final do veículo. É manhã, cerca das oito e meia, hora em que a maior parte das pessoas se arrasta diariamente para o seu emprego, enchendo os transportes públicos de pensamentos soltos, projectos e ansiedades enquanto se preparam para mais um dia de trabalho. À minha frente está um possível jovem executivo, de fato cinzento com a recente moda de camisa amarela e gravata a condizer, pasta de pele na mão, olhando impacientemente para o relógio com aspecto de caro, provavelmente preocupado com um atraso. Usa gel no cabelo lustroso para fazer uma pequena popa, óculos enormes de armações azuis.

Picoas. Em pé, perto da porta, está uma mulher jovem, bonita, de cabelos pelos ombros e pele bronzeada, nos seus vinte e poucos anos, de óculos escuros e vestida mais casualmente. O dossier e os livros que carrega na mão levam-me a pensar que é estudante universitária. Depois tem aquela cara que o conhecimento dá à maioria das pessoas: um antagonismo entre orgulho e a estima pessoal pela sua valorização pessoal e o sentimento de supremacia em relação aos menos habilitados.

Queira auxiliar-me

Na outra porta, do meu lado esquerdo, estão dois adolescentes, em amena cavaqueira, discutindo jogos de computador. O que tem um enorme rabo-de-cavalo mostra uns discos ao outro, revelando todos os pormenores que fazem um jogo cativar a atenção, ser viciante e, como tal, altamente interessante. Também à esquerda, mas nos bancos, estão duas donas-de-casa que aparentam ter por volta de cinquenta anos. O tema da conversa é o filho da vizinha que, vejam só, o rapazinho que é filho de gente de bem e parece ajuizado, que tinha bons resultados nos estudos, tanto que até foi para a faculdade, para engenheiro, e agora anda lá metido com aquelas más companhias que o levaram para a droga. Uma pena.

Queira auxiliar-me com o seu auxílio

Saldanha. Apercebo-me de que vem das carruagens que estão para trás mas ainda não consigo ver de quem se trata. Sentado do lado esquerdo está também um tipo grande e gordo. Todo ele é um grande barril de cerveja com umas calças vestidas que, com a força de um estômago dilatado, parecem estar à beira da ruptura. Agoniza com a força do calor. Pela sua testa escorrem gotas de suor que ele tenta eliminar, mas escapam algumas que lhe percorrem a face, passando pelas enormes patilhas e pelo bigode, até atingirem o queixo e o pescoço.

Obrigado e felicidades para si e para os seus

Ouço o tilintar de moedas. Já está bastante próximo. Continuo a deambulação visual. Os meus olhos quedam-se num velhote que entretanto entrou aquando da última paragem. Veste umas calças beige, uma camisa de cor clara indefinida com manga curta. Carrega um pequeno saco escuro numa das mãos. Tem um olhar pensativo, triste e vago enquanto olha insistentemente para o relógio, como que lutando contra o avanço dos ponteiros, sofrendo com a engrenagem impassível de um único sentido.

Campo pequeno. Primeiro o ruído da bengala a embater em todos os sentidos, tacteando o caminho. Depois é que consigo vê-la finalmente, e o homem de pequena estatura, ligeiramente forte, com vestes gastas e velhas pelo uso frequente a que são sujeitas que faz uso dela. O invisual está a passar ao lado do meu assento prosseguindo a sua caminhada.

Queira auxiliar

Pára para receber as moedas de algumas pessoas que as depositam num recipiente cilíndrico com uma pequena abertura na parte superior. Depois deseja felicidades a cada moeda que ouve cair junto das outras que já se encontram no recipiente e segue, com o cabelo sujo colado à cabeça e a barba por fazer, os olhos revirados e a cabeça estática, em direcção ao final do veículo; os seus passos são curtos, incertos e cuidadosos.

Entre campos. Já passou por mim e está fora do meu campo visual. Desfeito o mistério, as suas palavras, o barulho da bengala e das moedas vão progressivamente deixar de ser captadas pelos meus ouvidos, à medida que ele se distancia. A minha atenção volta-se a focar em novas pessoas que entram e se sentam na sua migração diária. Todas as idades e quase todas as profissões estão ali representadas em rostos desconhecidos e distantes. Suspiro, bocejo e, simultaneamente, espreguiço-me. Pego na minha mochila, levanta-mo a custo porque estou ensonado e ando em direcção à porta.

Cidade Universitária. Saio.»

Depois de um hiato em que pouco andei de transportes públicos, recomecei a fazê-lo diariamente. E foi não sem alguma tristeza que constatei que, a situação que há cinco anos estava circunscrita, confinada, alastrou de tal forma que pouco provável é entrar numa carruagem em que não haja um invisual pedinte. Multiplicaram-se, cada um com a sua lenga-lenga personalizada; há, inclusivamente, um que canta enquanto percute um ritmo, batendo com um objecto metálico contra a sua bengala.

Hoje apeteceu-me falar deste assunto porque, antes de ter passado por mim um pedinte na carruagem, estava um invisual no apeadeiro, com aspecto de quem tinha acabado de sair do trabalho e que regressava a casa como a maioria das pessoas que ali se encontravam.

Somos nós que descriminamos estas pessoas e tornamos um deles que tenha uma vida normal numa excepção ou são eles que exploram a nossa comiseração?