sexta-feira, março 05, 2004

Nem de propósito falaste de chatos como o inimigo público número um, Gonçalo, seu grandessíssimo Tubaralho. Já andava para partilhar este texto. É mais comprido do que o habitual, mas vale a pena.

«O maçador – Aparentemente era um ser humano igual aos outros – primata e bípede –, mas com graves problemas de oralidade.

Não roçava impressões, impunha as suas; eternizava os assuntos mais enfadonhos; e não comunicava com o próximo: desidratava-o. Talvez fosse por esta última característica que era tão requestado pela polícia secreta: em casos de resistência à denúncia, era o único inquisidor que não precisava de utilizar punhos ou brocas para arrancar informações – sentava-se numa cadeira e dispunha-se a contar a sua vida.

Mas atenção que o Feliciano podia vestir duas roupagens distintas: ou falava incessantemente empolgado por tudo o que de acessório descortinava num tema – tipo soda –, ou não fazia mais nada do que grunhir monossílabos e exasperar-nos com a sua sensaboria e lentidão – tipo purgante. E qualquer destas facetas enervava as pessoas: ou porque não articulava palavra, e descia a pressão arterial aos interlocutores, ou porque não se calava nem à lei da bala, e enfartava os cardíacos.

Era conhecido no bairro.
Havia pessoas que, na impossibilidade física e moral de o suportarem, mudavam de passeio para o evitar na rua. Nada mais ingénuo: um maçador como ele não se ofendia com isso, mesmo que o pressentisse; pelo contrário: sentia-se estimulado. Não se esqueçam que da mesma forma que um comilão se compensa a devorar barbaridades, o maior gáudio do chato é assaltar-nos a horas inoportunas para exibir o seu talento, massacrando-nos.

E não havia fuga possível: perguntávamos-lhe pela saúde e ele lançava-se numa inventariação detalhada da sintomatologia de todos os seus achaques recentes, com os nomes em latim; indagávamo-lo sobre os filhos e ele era tão tremendamente egoísta que ia ao ponto de acreditar no nosso interesse e de se esmerar na resposta; esboçávamos uma despedida apressada, a olhar para o relógio e a transpirar de stress, e ele borrifava-se na falência de todos os nossos compromissos para teimar num passeio à beira-mar.

Era a viva imagem da morte, o Feliciano: ao lado dele o Mundo parava, o sangue gelava-se-nos nas veias, o sexo e o amor deixavam de contar, o dinheiro perdia o interesse, as oportunidades goravam-se uma a uma, Deus abandonava-nos e, de um momento para o outro, todas as nossas funções biológicas cessavam. E o desespero chegava quando, à frente de um tabuleiro de chá, lhe perguntávamos por cortesia: «É servido?» «Bom, não é que tenha fome…», para o vermos abarcar por desfastio e apoderar-se sem dó nem piedade da torradinha do meio.

Há muitos como ele: «bricoleurs», instrutores de condução, engenheiros, coleccionadores, lentes da faculdade, militares de carreira, genealogistas, velejadores, mães babadas, bêbedos, linguistas, agricultores, metralhadores de anedotas e hipocondríacos, embora o chato mais em voga seja hoje o não-fumador.

E, como bom chato que era, Feliciano tinha a paixão dos hábitos: separava na véspera a roupa que ia vestir, desenhava nas paredes da garagem o perfil das ferramentas, jogava no totobola sempre com a mesma chave, dobrava o lenço em quatro a seguir ao escarro, escrevia para os ministros cartas de sessenta e duas páginas a denunciar os cocós de cão, descascava as uvas, conferia as contas dos restaurantes até o convidado desmaiar, obrava a horas certas para educar o intestino e fazia amor às sextas-feiras, de quinze em quinze dias, estivesse quem estivesse em casa.

A convivência com chatos como o Feliciano pode ser tão nociva para o nosso equilíbrio físico e mental que três das maiores instituições do Mundo já alertaram a humanidade para os riscos de contágio: a Organização Mundial de Saúde preveniu que a angústia que um chato provoca degenera as células, o Vaticano anunciou para breve a anulação dos casamentos para cônjuges molestados e a ONU viu-se obrigada a emitir um comunicado exortando os civis de todo o Mundo a capturá-los vivos ou mortos e a entregá-los às autoridades dos respectivos países. A ideia é isolá-los numa reserva murada para pôr cobro à epidemia – independentemente da língua, raça ou credo – e, segundo fontes segurar, foi a Suíça que, registando o maior número de infectados, ganhou o ano passado o concurso internacional lançado pela AMI para o seu acolhimento.

Coitado do Feliciano. Foi caçado por uma multidão descontrolada que o quis linchar, mas, tendo escapado com vida por lhe terem concedido uma última vontade, ou seja, ter escolhido contar uma anedota que adormeceu os captores, acabou por encontrar felicidade em Berna, onde existe um mandado de prisão para quem se ri depois das onze da noite e pena de morte para os que fazem amor a um ritmo desencontrado dos ponteiros do relógio.»

In “Os cromos de Rita Ferro”, Rita Ferro