sábado, março 13, 2004

O mundo é pequeno – Hoje regresso aos caminhos da religião. Não daquela religião a que normalmente associamos o termo e que suscita discussões filosóficas que nunca passam do plano abstracto. Estoutra a que me refiro, só tem graça se descer a um plano objectivo, concreto, material. Não obstante, tem inúmeras ligações com a primeira: também eleva determinados seres à categoria de deuses; tem a capacidade para nos levar ao êxtase, para produzir em nós comportamentos pouco ortodoxos, impulsivos e, até mesmo, claro está, as mais profundas contradições; pode-nos tirar o sono.

Passemos à fase descritiva desta curta narração.

Nunca ninguém me explicou porque raio as entidades sobrenaturais que governam este e o outro mundo são todas masculinas. Possivelmente, a mesma confusão aflige o herói deste relato. De tal forma o terá apoquentado que, certo dia, decretou ter, para si próprio, elevado uma pessoa à categoria de Deusa (a letra maiúscula é empregue para reforçar a dificuldade de acesso a esta categoria dada a exigência dos critérios para ela estabelecidos). Com um discurso frenético, acalorado, como não podia deixar de ser, colocou Sevilha no centro do mundo conhecido. O grande problema que a vida lhe colocava naquela circunstância precisa era o da tradicional inacessibilidade dos seres superiores: têm, regra geral, uma agenda e uma paciência terríveis.

Assim sendo, com estas hipóteses na mesa, chegou a altura de jogar a cartada que, a ter em conta a lógica, devia seguir-se. O tráfico de influências, o lobbying, desenganem-se, é prática a que todos recorremos. Bastou um conhecimento comum para, de imediato, o contacto tomar lugar. Porém, nem sempre as notícias trazem as informações que queremos ouvir. Disse a Deusa que era engraçado, o nosso herói tinha a mesma nacionalidade que o mais-que-tudo dela.

O facto do Desmancha-prazeres (aqui, uma vez mais, com letra maiúscula, dado o profissionalismo com que exercia esta função) ser aluno da concorrência ainda contribui para arrefecer mais o balde de água, já de si, fria. Mas, não foi por isso que a diversão não continuou a ser nota dominante até ao final da noite. E, mais à frente na estadia, correu outra notícia de grande importância. Parece que a Deusa estava novamente sozinha no monte de Olimpo. O Desmancha-prazeres tinha-se posto na alheta.

Estava estabelecido o caminho a trilhar. Agora, apenas a casa-de-banho era um verdadeiro obstáculo, digno desse nome.

Como conhecia o nosso herói o rosto do Desmancha-prazeres tão bem? Humildemente confesso que, mesmo tendo-o visto naquela noite em que nos deixou jornais e revistas nacionais, autênticas preciosidades naquela terra de bárbaros que não almoçam, não conseguiria reconhecê-lo se o visse novamente. Como aliás, não reconheci.

Reconheci, isso sim, no decorrer da conversa com os especialistas de recursos humanos, que tinha perante mim um homem modificado. Pessimista, rendido, conformado, só falou de problemas, a propósito da globalização, do alargamento da União e da política de taxa de juro do BCE. Engasgou-se, balbuciou, perdeu o fio à meada quando o convidaram a discursar durante três muito longos minutos. Não consegui deixar de sentir pena por aquela pobre alma perdida. É um sentimento recorrente quando nos apercebemos que alguém teve tudo na mão, o mundo por inteiro, e deixou que lhe escapasse como areia por entre os dedos.

Que almas andarás tu a converter para a tua religião nos dias que correm, ó Deusa?