quinta-feira, abril 15, 2004

Acerca da lucidez (ou da falta dela) – Muitas das vezes que leio o que o Miguel Sousa Tavares escreve, solto aquele “Até que enfim, haja alguém que pensa como eu” que todos costumamos levar aprisionados no fundo da garganta. Na sexta-feira passada, cumpri este ritual depois de ler "O Público". Porém, foi nitidamente uma precipitação, como agora reconheço. O Miguel abordou a questão do novo romance de Saramago duma forma que parece não ter pegado no livro antes. Começa por corrigir o Prémio Nobel, mais coisa menos coisa, desta forma:

O voto em branco não é o afirmar do descrédito na democracia. É exactamente o oposto. Pese embora a ausência duma escolha por parte do eleitor, este voto manifesta a sua total concordância com o nosso sistema político. Senão não se teria dado ao trabalho de ir até ao local da eleição. Os votos nulos e a abstenção são os que atacam a democracia que, através do desinteresse e da afronta, mostram que quem a eles recorreu acha que a sua contribuição de nada serve, ou seja, não acredita no sistema.

Miguel, em que parte do livro é que Saramago afirma que o voto em branco vai contra o regime democrático? O escritor limita-se a construir uma ficção centrada na incapacidade do poder político de compreender, organizar-se e encontrar soluções para o resultado inesperado daquelas eleições. Aliás, se bem me lembro, a grande marca do acto eleitoral chave no romance é o facto da abstenção ter sido reduzida.

Muita gente se tem levantado, esperneado, refilado, insultado mas poucos olham de frente para a verdadeira questão central do que se passa naquele cenário imaginário. O voto em branco não é o protagonista. É a consequência, a manifestação. A falta de identificação com as alternativas disponíveis e de confiança nos projectos eleitorais que muitos eleitores sentem é que se pretende levar à barra.

O problema é identificar o verdadeiro culpado.