segunda-feira, agosto 23, 2004

Poder de escolha - Há uma grande diferença entre um livro escrito por Carl Sagan e por Stephen Hawkings. Nota-se, no primeiro, a vontade de partilhar um segredo, a paixão da ciência com o público em geral, que se encontra fora da temática. O segundo tem uma escrita que, por vezes, me parece um pouco presunçosa, mais centrada na primeira pessoa, como se quisesse dizer “fui eu” ou “estou aqui” a cada momento.

E, no entanto, não é por isso que o deixo de respeitar menos. Porque Hawkings simboliza uma das histórias marcantes da luta pela vida. Vejo-o, em fotografias, sentado na sua cadeira ultramoderna, corpo franzino e debilitado, cabeça a pender para um lado. Um dos maiores cérebros da física teórica do tempo actual e apenas move dois dedos. O resto é tudo as famosas “little gray cells” de Poirot.

Este catedrático simboliza, para mim, a esperança, aquilo que desejaríamos para todos aqueles que sofrem de doenças - degenerativas, cardiovasculares, etc. - que os incapacitam fortemente.

No entanto, as excepções não passam disso mesmo, nunca chegam a regra. E é para a maioria que não consegue integrar-se efectivamente na sociedade, sentir-se uma pessoa útil, completa, realizada que a eutanásia (quem quiser pode juntar aqui o advérbio de modo “infelizmente”) faz sentido.

Lá no fundo, bem mesmo no fundo, ninguém gosta de deixar este mundo. Nem sequer o tipo com a maior tendência suicida. Nem mesmo o Zé Maria. O que ele deseja é alterar a sua vida. Na agonia de ver frustradas todas as tentativas que realiza, abraça aquela que lhe parece ser a sua única saída, aquela que surge em último lugar.

O instinto básico de sobrevivência impede que nos precipitemos de prédios altos ou que tomemos doses excessivas de barbitúricos. Contudo, por vezes, este mesmo instinto é suplantado por depressões, aquela que vários consideram vir a ser a peste deste século, ou outro tipo de doenças do foro mental.

Nenhuma pessoa saudável se suicida; o suicídio é o resultado de um desequilíbrio mental. Como tal, deve fazer-se tudo o que estiver ao alcance para evitar a atitude drástica e reequilibrar essa pessoa, porque há perspectivas de melhoria.

Um dos principais argumentos que tenho visto ser apresentado contra a eutanásia é o estado depressivo em que se supõe estar aqueles que a solicitam. Uma conclusão que me parece incrivelmente fantástica e arguta. Agora, se todos os que se opõem veementemente à morte assistida estivessem na pele dum tetraplégico que passa anos deitados numa cama, mexendo só a cabeça, possivelmente já teriam alguma dificuldade em lidar com a malfadada depressão.

É verdade, é tão mau que até para acabar connosco próprios precisamos de ajuda.
A ideia de matar gente também não me agrada. Há quem advogue que há sempre esperança e possibilidades de realizar essas pessoas. Mas, normalmente só estão ao alcance dos reputados, ricos e excepcionais Stephen Hawkings e Christopher Reeves deste mundo. E resta saber como eles verdadeiramente se sentem. Há não muito tempo atrás, surgiram rumores que o físico era vítima de maus tratos por parte da sua esposa.

Voltando à vaca fria: se, durante um espaço de tempo significativo, com insistentes e reiteradas manifestações de vontade, com um quadro médico que não prevê melhorias ou, pior, prevê agravamento progressivo, não vejo o porquê de lhes negar a morte que desejam ter. É somente uma questão de dar ao individuo a hipótese de escolha sobre a sua própria vida.

Afinal de contas, consideramos um egoísmo nosso adiar a morte do animal de estimação pelo qual nada podemos fazer senão vê-lo sofrer enquanto não o levarmos pela última vez ao veterinário.