«Sim, tudo é relativo – Anda para aí uma teoria sobre a relatividade da importância de escolher as pessoas menos indicadas para os cargos mais importantes que, levada às últimas consequências, acabaria a sugerir a irrelevância das escolhas – entre pessoas, entre ideias, entre valores.
George W. Bush demonstrou que o Presidente da nação mais poderosa do mundo se permitia invadir um país estrangeiro com a recurso a pretextos forjado e mentiras, defendidas como verdades, perante o seu país, os aliados e as Nações Unidas. Mostrou também que era possível governar beneficiando os ricos e desprotegendo os pobres, sacrificando o ambiente a benefício de poderosas empresas, misturando os negócios de energia e de armamento com as missões de guerra e impondo a vontade soberana dos Estados Unidos contra convenções, acordos, fóruns multilaterais ou simples concertação de interesses com outras nações. Foi reeleito e, perante o desânimo geral, logo houve quem, apesar de não conseguir subscrever o grosso da “doutrina Bush” para o mundo, tenha vindo explicar que o seu segundo mandato iria ser diferente: aberto ao multilateralismo, ao diálogo, à cooperação. Continuamos à espera.
O mesmo Bush nomeou para embaixador americano na ONU alguém que defendera publicamente o fim da organização ou a sua reforma, reduzindo os membros permanentes do Conselho de Segurança a um apenas: os próprios Estados Unidos. Mas, precisamente porque esse era o seu pensamento, o embaixador John Bolton, conforme nos explicaram, estará no local certo para rever as suas ideias. E o mesmo nos disseram da escolha de Wolfowitz, líder ideológico da extrema-direita americana e mentor da “pacificação” do Iraque, onde lhe caberá defender o financiamento das ajudas ao desenvolvimento do Terceiro Mundo. Tal como Bolton, também ele já jurou que irá fazer o contrário do que defendeu até aqui.
Na Europa, a escolha por Durão Barroso do italiano Butiglione para comissário europeu levantou uma onda de protestos, fundada no currículo pouco recomendável deste ultraconservador católico, amigo pessoal e conselheiro de João Paulo II. Depois de ter forçado a sua escolha até ao ponto de ruptura, Barroso foi forçado a recuar, o que muito entristeceu aqueles que defendiam que se podia representar a Europa preconizando valores contrários àqueles que compõem o património adquirido dos europeus e o melhor da sua construção ideológica. Em todos os casos, apareceu sempre quem defendesse uma espécie de teoria absurda de que, quando pior é a escolha, quanto menos recomendável é o perfil do escolhido para determinado cargo, melhores são as perspectivas de trabalho. Porque, afinal, tudo será conciliável, tudo será relativo.
Ora, sejamos directos: a escolha do cardel Ratzinger para Papa foi a pior escolha possível dos cardeais. Foi, como alguém escreveu, a extrema-direita do Espírito Santo quem escolheu este homem que prega o valor absoluto da fé contra, imagine-se…, “a ditadura do relativismo”. Conhecendo-se as suas ideias e o seu percurso dentro da Igreja (em particular a sua transformação de teólogo do Vaticano II em perseguidor dos teólogos não-alinhados), só uma transformação radical impedirá que ele seja um Papa para dividir e não para unir – católicos e não-católicos. Não acrescentará o rebanho pela força da palavra e do Evangelho, como João XXIII, nem pelo carisma pessoal, como João Paulo II.
Mas não, já aí está quem nos explique que uma e outra pessoa não são a mesma: morreu o cardeal Ratzinger, o guardião da fé, o príncipe da intransigência e ressuscitou nele o Papa Bento XVI, um espírito novo, tolerante e aberto. E, para princípio de demonstração, aí está a sua comunicação do primeiro dia de papado, defendendo “a causa fundamental do ecumenismo”, em absoluto contraste com o seu anterior personagem que defendia que “fora da Igreja Católica não há salvação”.
Está dado o sinal para a transformação. Em breve haverá quem queira acreditar que Ratzinger-Papa irá restabelecer a importância das dioceses e das conferências episcopais, ou seja, da autonomia das igrejas nacionais, que, sob o papado de João Paulo II e sob directa influência de Ratzinger-cardeal e ao arrepio de Vaticano II, foram transformados em meros executores do pensamento e da orientação do Papa e da Cúria. E depois iremos ainda ver o novo Papa, contrariando tudo o que sempre fio o seu pensamento, abrir o diálogo nas questões fechadas: as questões da bioética, o controlo da natalidade, o celibato dos padres, o sacerdócio das mulheres. Porquê? Justamente porque ninguém o espera. Deve ser a isto que chamam milagres.
É inevitável, e não apenas provável, que os primeiros sinais enviados por Bento XVI sejam conciliadores e diplomáticos. Mas, a menos que ousássemos presumir a sua desonestidade intelectual e moral, nada autoriza imaginar que, uma vez Papa, Ratzinger se abstenha de dar à Igreja a orientação conforme ao seu pensamento. Eu creio mesmo que a sucessão em Ratzinger fazia parte do testamento transmitido a todos os cardeais por João Paulo II. E que o conclave que o escolheu – e em que todos ou quase todos os cardeais foram nomeados por João Paulo II – se limitou a funcionar como executor testamentário. A “eleição” de Ratzinger foi preparada de longe e ao detalhe, por ele e pelo seu antecessor, e só não foi mais rápida porque isso pareceria uma nomeação e não uma eleição. Este não será um Papa de transição, nem sequer de continuação: será um Papa de consolidação daquilo que de mais conservador e fechado existe na Santa Madre Igreja. Passados os primeiros tempos da diplomacia e da simpatia, Bento XVI dedicar-se-á, tão subtilmente quanto a sua brilhante inteligência augura, a deixar a Igreja amarrada à mais estrita ortodoxia, por longos e bons anos, desejadamente por séculos, até ao final dos tempos.
A meu ver, não há que procurar outras pistas, senão as que ele próprio deixou, no momento decisivo em que pronunciou a homília da missa que antecedeu o conclave. Não foi um discurso de circunstância nem de mais um entre 115 cardeais. Não foi sequer um discurso de candidato a Papa: foi o discurso de alguém reclamando uma herança, enunciando uma doutrina que, no final, colocava uma pergunta óbvia – “Quem, se não eu, pode executar esta política?”
E que doutrina é essa? É a de “um humilde servo de Deus” e que acredita que “o cristão é uma pessoa simples”, uma “gente sincera”, a quem os bispos “devem defender dos intelectuais”. E, entre outros males, os intelectuais pensam. E, ao pensarem, eles podem fazer com que essa gente simples se deixe arrastar “por aqui e por ali, por qualquer vento ou doutrina”, acabando-se numa “ditadura do relativismo, em que nada é definitivo”, como no tempo de Galileu, que ousou pensar que era a Terra que girava em torno do Sol.
Esse “relativismo” aplica-o Ratzinger às dúvidas que o homem, sujeito à lei da vida e à lei da morte, ousa ainda colocar, para além ou à margem dos mandamentos irrevogáveis da Igreja: quando começa e quando acaba a vida humana? Será desejável trazer ao mundo crianças deficientes ou condenadas ao sofrimento, podendo evitá-lo? Será desejável prolongar uma existência apenas clínica e vegetativa, onde a dignidade da própria vida já se extinguiu e nada mais resta do que uma crença doutrinária e um negócio hospitalar? Será humano, e cristão, continuar a defender a proibição do preservativo em sociedades dizimadas pela sida, em nome do mandamento de fé de que a sexualidade não existe como acto próprio e manifestação de amor, mas apenas como instrumento de procriação divina? Em nome de que benefícios pastorais (os malefícios, infelizmente, conhecemo-los bem demais…) se impõe o celibato aos padres? E em nome de que mandamento divino se excluem as mulheres do sacerdócio?
A este “relativismo”, que, segundo ele, não reconhece nada como valor absoluto, Ratzinger contrapõe o único valor absoluto: a fé. A fé de que não há salvação fora dos mandamentos da Igreja Católica. Mas os mandamentos, tal como ele os impõe, e não como os daqueles teólogos desviantes a cuja perseguição o novo Papa dedicou os últimos 25 anos da sua vida.
Mas o Papa está enganado: existe outra leitura do cristianismo e não é por ele a proibir que ela deixa de existir. E existem valores fora do cristianismo – noutras religiões ou em religião alguma. Não existe apenas a doutrina dele ou a ausência de quaisquer valores. Na Europa, que ele parece ter escolhido como seu terreno predilecto de combate, existem, pelo menos desde 1789, valores cívicos, políticos e éticos, que não são tributários da Igreja Católica e de que o comum dos europeus não está a fim de abdicar em nome da proposta “salvação única”. Como a pena de morte, que o agora Papa justificou em tempos, e que a Europa baniu há muito.»
Miguel Sousa Tavares, Público 23 de Abril de 2005
George W. Bush demonstrou que o Presidente da nação mais poderosa do mundo se permitia invadir um país estrangeiro com a recurso a pretextos forjado e mentiras, defendidas como verdades, perante o seu país, os aliados e as Nações Unidas. Mostrou também que era possível governar beneficiando os ricos e desprotegendo os pobres, sacrificando o ambiente a benefício de poderosas empresas, misturando os negócios de energia e de armamento com as missões de guerra e impondo a vontade soberana dos Estados Unidos contra convenções, acordos, fóruns multilaterais ou simples concertação de interesses com outras nações. Foi reeleito e, perante o desânimo geral, logo houve quem, apesar de não conseguir subscrever o grosso da “doutrina Bush” para o mundo, tenha vindo explicar que o seu segundo mandato iria ser diferente: aberto ao multilateralismo, ao diálogo, à cooperação. Continuamos à espera.
O mesmo Bush nomeou para embaixador americano na ONU alguém que defendera publicamente o fim da organização ou a sua reforma, reduzindo os membros permanentes do Conselho de Segurança a um apenas: os próprios Estados Unidos. Mas, precisamente porque esse era o seu pensamento, o embaixador John Bolton, conforme nos explicaram, estará no local certo para rever as suas ideias. E o mesmo nos disseram da escolha de Wolfowitz, líder ideológico da extrema-direita americana e mentor da “pacificação” do Iraque, onde lhe caberá defender o financiamento das ajudas ao desenvolvimento do Terceiro Mundo. Tal como Bolton, também ele já jurou que irá fazer o contrário do que defendeu até aqui.
Na Europa, a escolha por Durão Barroso do italiano Butiglione para comissário europeu levantou uma onda de protestos, fundada no currículo pouco recomendável deste ultraconservador católico, amigo pessoal e conselheiro de João Paulo II. Depois de ter forçado a sua escolha até ao ponto de ruptura, Barroso foi forçado a recuar, o que muito entristeceu aqueles que defendiam que se podia representar a Europa preconizando valores contrários àqueles que compõem o património adquirido dos europeus e o melhor da sua construção ideológica. Em todos os casos, apareceu sempre quem defendesse uma espécie de teoria absurda de que, quando pior é a escolha, quanto menos recomendável é o perfil do escolhido para determinado cargo, melhores são as perspectivas de trabalho. Porque, afinal, tudo será conciliável, tudo será relativo.
Ora, sejamos directos: a escolha do cardel Ratzinger para Papa foi a pior escolha possível dos cardeais. Foi, como alguém escreveu, a extrema-direita do Espírito Santo quem escolheu este homem que prega o valor absoluto da fé contra, imagine-se…, “a ditadura do relativismo”. Conhecendo-se as suas ideias e o seu percurso dentro da Igreja (em particular a sua transformação de teólogo do Vaticano II em perseguidor dos teólogos não-alinhados), só uma transformação radical impedirá que ele seja um Papa para dividir e não para unir – católicos e não-católicos. Não acrescentará o rebanho pela força da palavra e do Evangelho, como João XXIII, nem pelo carisma pessoal, como João Paulo II.
Mas não, já aí está quem nos explique que uma e outra pessoa não são a mesma: morreu o cardeal Ratzinger, o guardião da fé, o príncipe da intransigência e ressuscitou nele o Papa Bento XVI, um espírito novo, tolerante e aberto. E, para princípio de demonstração, aí está a sua comunicação do primeiro dia de papado, defendendo “a causa fundamental do ecumenismo”, em absoluto contraste com o seu anterior personagem que defendia que “fora da Igreja Católica não há salvação”.
Está dado o sinal para a transformação. Em breve haverá quem queira acreditar que Ratzinger-Papa irá restabelecer a importância das dioceses e das conferências episcopais, ou seja, da autonomia das igrejas nacionais, que, sob o papado de João Paulo II e sob directa influência de Ratzinger-cardeal e ao arrepio de Vaticano II, foram transformados em meros executores do pensamento e da orientação do Papa e da Cúria. E depois iremos ainda ver o novo Papa, contrariando tudo o que sempre fio o seu pensamento, abrir o diálogo nas questões fechadas: as questões da bioética, o controlo da natalidade, o celibato dos padres, o sacerdócio das mulheres. Porquê? Justamente porque ninguém o espera. Deve ser a isto que chamam milagres.
É inevitável, e não apenas provável, que os primeiros sinais enviados por Bento XVI sejam conciliadores e diplomáticos. Mas, a menos que ousássemos presumir a sua desonestidade intelectual e moral, nada autoriza imaginar que, uma vez Papa, Ratzinger se abstenha de dar à Igreja a orientação conforme ao seu pensamento. Eu creio mesmo que a sucessão em Ratzinger fazia parte do testamento transmitido a todos os cardeais por João Paulo II. E que o conclave que o escolheu – e em que todos ou quase todos os cardeais foram nomeados por João Paulo II – se limitou a funcionar como executor testamentário. A “eleição” de Ratzinger foi preparada de longe e ao detalhe, por ele e pelo seu antecessor, e só não foi mais rápida porque isso pareceria uma nomeação e não uma eleição. Este não será um Papa de transição, nem sequer de continuação: será um Papa de consolidação daquilo que de mais conservador e fechado existe na Santa Madre Igreja. Passados os primeiros tempos da diplomacia e da simpatia, Bento XVI dedicar-se-á, tão subtilmente quanto a sua brilhante inteligência augura, a deixar a Igreja amarrada à mais estrita ortodoxia, por longos e bons anos, desejadamente por séculos, até ao final dos tempos.
A meu ver, não há que procurar outras pistas, senão as que ele próprio deixou, no momento decisivo em que pronunciou a homília da missa que antecedeu o conclave. Não foi um discurso de circunstância nem de mais um entre 115 cardeais. Não foi sequer um discurso de candidato a Papa: foi o discurso de alguém reclamando uma herança, enunciando uma doutrina que, no final, colocava uma pergunta óbvia – “Quem, se não eu, pode executar esta política?”
E que doutrina é essa? É a de “um humilde servo de Deus” e que acredita que “o cristão é uma pessoa simples”, uma “gente sincera”, a quem os bispos “devem defender dos intelectuais”. E, entre outros males, os intelectuais pensam. E, ao pensarem, eles podem fazer com que essa gente simples se deixe arrastar “por aqui e por ali, por qualquer vento ou doutrina”, acabando-se numa “ditadura do relativismo, em que nada é definitivo”, como no tempo de Galileu, que ousou pensar que era a Terra que girava em torno do Sol.
Esse “relativismo” aplica-o Ratzinger às dúvidas que o homem, sujeito à lei da vida e à lei da morte, ousa ainda colocar, para além ou à margem dos mandamentos irrevogáveis da Igreja: quando começa e quando acaba a vida humana? Será desejável trazer ao mundo crianças deficientes ou condenadas ao sofrimento, podendo evitá-lo? Será desejável prolongar uma existência apenas clínica e vegetativa, onde a dignidade da própria vida já se extinguiu e nada mais resta do que uma crença doutrinária e um negócio hospitalar? Será humano, e cristão, continuar a defender a proibição do preservativo em sociedades dizimadas pela sida, em nome do mandamento de fé de que a sexualidade não existe como acto próprio e manifestação de amor, mas apenas como instrumento de procriação divina? Em nome de que benefícios pastorais (os malefícios, infelizmente, conhecemo-los bem demais…) se impõe o celibato aos padres? E em nome de que mandamento divino se excluem as mulheres do sacerdócio?
A este “relativismo”, que, segundo ele, não reconhece nada como valor absoluto, Ratzinger contrapõe o único valor absoluto: a fé. A fé de que não há salvação fora dos mandamentos da Igreja Católica. Mas os mandamentos, tal como ele os impõe, e não como os daqueles teólogos desviantes a cuja perseguição o novo Papa dedicou os últimos 25 anos da sua vida.
Mas o Papa está enganado: existe outra leitura do cristianismo e não é por ele a proibir que ela deixa de existir. E existem valores fora do cristianismo – noutras religiões ou em religião alguma. Não existe apenas a doutrina dele ou a ausência de quaisquer valores. Na Europa, que ele parece ter escolhido como seu terreno predilecto de combate, existem, pelo menos desde 1789, valores cívicos, políticos e éticos, que não são tributários da Igreja Católica e de que o comum dos europeus não está a fim de abdicar em nome da proposta “salvação única”. Como a pena de morte, que o agora Papa justificou em tempos, e que a Europa baniu há muito.»
Miguel Sousa Tavares, Público 23 de Abril de 2005
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