terça-feira, abril 25, 2006

Nunca sabes onde pões as coisas
Ouvia-a dizer enquanto passava os olhos e as mãos por todo o tampo da secretária desarrumada, atrás dos objectos, do candeeiro, do laptop, do calendário, do pisa-papéis, da pilha de documentos, dos livros. Nada. Rebuscava todos os cantos e recantos das três gavetas semi-cheias semi-vazias de tralhas por arrumar, porcarias que ficam à espera de ser deitadas fora até chegar aquela decisão definitiva e purificadora que enfia tudo no cesto sem critério nem misericórdia. Quanto mais as chaves do carro teimavam em não aparecer mais ela
Já estamos atrasadíssimos
como se nunca se tivesse atrasado, como se nunca tivesse parado para procurar algo que não se lembrava onde tinha posto. Mas não era isso. Era mais do que isso. Havia dias em que acordava logo com pedras na mão prontas a serem arremessadas na sua direcção. Indiscriminadamente. À mínima coisa. Sem aviso. Sem dó nem piedade. E nunca acabavam. Porque se não recebessem nenhuma reacção que pretendesse contrabalançar o sentido da investida, continuariam a voar; se houvesse uma resposta, então a retaliação não conheceria limites e continuaria para além do razoável, para lá sequer do aceitável, do tolerável.
És sempre a mesma coisa
As mãos continuavam a vasculhar, prosseguiram pela mesa de café, ao lado do cinzeiro, ao lado da janela da eterna flor desmaiada, por entre as revistas. Resolveu deixar a sala e passar revista à cozinha, também como uma forma de se afastar das palavras venenosas do fogo cerrado. Percorreu a bancada, percorreu todos os esconderijos que as coisas que não querem ser achadas escolhem para se esconder, passou pela mesa onde, para além dos pratos por arrumar, se amontoavam cartas, contas, daquela publicidade que infesta o correio.
Mas porque é que não pões as coisas nos sítios? Porquê…? Custa assim tanto ter um mínimo de organização?
De repente, na cadeira encostada à parede da cozinha. A mala dela. Delicadamente agarrou e dirigiu-se à sala. O fecho ligeiramente aberto. Um objecto metálico dependurado, o objecto que impede, qual muro de betão, que ela continue a saraivada de ataques, que estancou por completo a fúria acusatória. É o porta-chaves. Da chave. Do carro.

A mala está na mão dela. Ela está calada. Ele continua calado.