segunda-feira, abril 17, 2006

Quando for grande quero saber escrever assim

«Querido leitor:
Não sei com que palavras te hei-de apresentar este livro, mesmo depois da volta que levou. Escrito de uma assentada há mais de quarenta anos, na idade em que os atrevimentos são argumentos, nele deixei a nu toda a fantasia descabelada e toda a canhestrez expressiva que se tem impunemente na juventude. Mas tão embaraçado fiquei, quando na maturidade o reli, que fiz os possíveis por esquecê-lo e por que fosse esquecido. Hoje, porém, nesta vertente da vida em que se olham com lucidez e benevolência os verdores da mocidade, resolvi recuperá-lo. Pacientemente, limpei-o das principais impurezas, dei um jeito aos comportamentos mais desacertados, tentei, enfim, torná-lo legível. Por ele e por mim. Por ele, porque, apesar de tudo, conta uma história portuguesmente verosímil, dado que somos os andarilhos do mundo, capazes em todo o lado do melhor e do pior; por mim, porque nenhum autor gosta de deixar no espólio criações repudiadas. E aqui tens a obra outra vez trazida a lume. Tu dirás se valeu a pena o longo pousio e a indispensável monda. No presente, é mais que certo que não conceberia a narrativa tão linear e apressada. Procuraria ao menos que fosse mais entrosada psicologicamente, mais lógica, menos sumária e arbitrária. Mas teria também o seu preço tal presunção e coerência. Talvez que assim não conseguisse tão espontânea e liberalmente dar largas à imaginação. Que, valha a verdade, é essa a única ponta por onde se lhe pode pegar. Confesso mesmo que, nesse capítulo, nunca mais tive experiência igual. A caneta parecia-me na mão o cabo endiabrado de uma vassoira de feiticeira. Voei, não há dúvida. Simplesmente, esqueci entretanto as leis da gravidade.

E quando caí em mim foi a desilusão total. Mas não há como o tempo para tonra relativos os juízos absolutos. À hora menos esperada da razão, damos connosco a sorrir dos rigores dos nossos anteriores critérios. Foi o que me aconteceu. Acabei por descobrir que, mais do que anatematizar maceradamente certos erros, o melhor é compreendê-los na sua circunstância e tentar minorá-los. E pronto. Depois de o aceitar em consciência e de o mortificar na bigorna do ofício, assumo em parte inteira o devaneio. E até com certo enternecimento. Talvez por me sentir incapaz de o repetir…

Coimbra, Maio de 1985

Teu
Miguel Torga»

Prefácio d’O Senhor Ventura