quarta-feira, novembro 01, 2006

Um texto para o dia dos finados - Há um certo discurso que me assusta. Porque pressupõe uma hierarquia na importância da vida. Matar um mamífero como uma vaca ou um borrego para alimentação parece escandaloso para alguns vegetarianos. Possivelmente exterminar insectos já é algo que se faz de ânimo leve. Quer dizer, as melgas irritam, as moscas chateiam.

Particularmente interessante é para mim aquela variante do “não como carne por causa dos animaizinhos mas como peixe”. Como se o acto da pesca, prender um objecto afiado na boca de um peixe e puxá-lo para fora de água até que asfixie, não fosse também uma morte horripilante. É claro que há uma diferença: o peixe não emite sons de desespero como os mamíferos.

Tudo isto é, possivelmente, perfeitamente, embora escandalosamente, normal. Qualquer mamífero recolhe mais facilmente a nossa simpatia e empatia. Os mamíferos são queridos. E são também muito mais próximos de nós. Os insectos e os répteis, por exemplo, são, na maioria, feios e até nojentos. Acabar com aqueles bichos até parece uma purificação do planeta.

Não mato por desporto. Não mato por divertimento. Detesto a glorificação da violência ou da morte tal como existe na caça ou na tourada. E na pesca, também. Mas alimento-me da carne de outros animais. Por vezes, mato insectos quando me incomodam, embora prefira usar um repelente que os demova de me picarem e não lhes seja mortal.


O que mais me irrita neste história do referendo do aborto é aquele bocado da pergunta que estabelece um horizonte temporal para que possa ser praticado: “até às dez semanas”. Não consigo perceber porquê. Aliás, se o meu voto não fosse dado como irregular, riscaria essa frase do meu boletim no dia em que fosse colocar a minha cruz no “sim”.

Acho as tentativa de determinação do inicio da vida humana uma perfeita idiotice. No mínimo, quando o óvulo é inseminado, já está lá toda a potencialidade de uma vida ser gerada e aparecer neste mundo. Pode não se vir a concretizar. Mas também pode não se vir a concretizar ao oitavo mês ou mesmo na recta final.

Ou seja, quem aborta sabe que vai acabar com uma vida. E não há volta a dar a isto. Mais: quem aborta tem que estar consciente que está a acabar com uma vida. Mesmo totalmente a favor do aborto, não aceito que uma pessoa que considere exercê-lo não o faça sem ser confrontada com a gravidade e o impacto da sua decisão.

O aborto deve ser uma opção possível mas isso não equivale nem de perto nem de longe a dizer que é para ser aplicada chapa quatro a todos os casos: é uma situação limite, quando todas as outras se esgotaram. E não me venham dizer que a generalidade das mulheres que alguma vez abortaram o fizeram por desporto

É claro que há sempre que o faça. Qualquer partidário do “não” conseguirá sempre exemplos de quem aborta por dá cá aquela palha. Da mesma forma que há pessoas que conduzem de uma forma proibitivas e colocam em risco não só a própria vida, mas também a de terceiros (o tal “terceiro” que é sempre invocado nestas discussões). Às vezes até o quarto, o quinto, o sexto. E ninguém considera minimamente sensato e justificável proibir a condução no território nacional por isso. Porque isso são excepções e não a generalidade dos casos.

Não vale a pena tentar arranjar argumentos para decidir que a vida começa noutro momento da concepção, que esse instante é miraculosamente adiado para que convenientemente possamos acabar com tudo antes de existir ali alguma coisa que nos deixe um peso na consciência. O cerne da questão não é esse. O cerne da questão é a opção de uma mulher decidir sobre o seu ventre e o seu corpo. O cerne da questão é uma palavra chamada “liberdade”.

Sendo assim, qual a justificação das “dez semanas”? Dói menos acabar com uma vida quando ela ainda está longe de se parecer connosco, quando ainda não passa de chusma de células sem nenhuma aparência com um ser humano e, desta forma anestesiada dormir melhor? É mais fácil matar o insecto?

Liberalizem o aborto. Mas não fujam com o rabo à seringa.