quarta-feira, maio 23, 2007

O som é o da caixa de madeira escura a pedir restauro, pendurada no pilar da parede branca. O metal dos ponteiros. Separado por uma pequena porta de vidro, o pêndulo com a extremidade em formato circular, timoneiro incansável
Tic tac
não fosse a corda que nunca acaba, parece que estás sempre de braço esticado com a chave metálica na mão que entra naquele orifício à esquerda do centro onde repousam as raízes dos ponteiros, algures entre o oito e o nove, à espera de ver um qualquer abrandamento do mecanismo que põe tudo em andamento
Tic tac
para imediatamente pôr cobro ao descanso que não queres que tenha. Nunca desligas, nunca o descansas, a tua vida, tudo subordinado a este movimento perpétuo, à lei tirânica daquelas duas hastes pretas que eternamente se arrastam sobre uma superfície circular branca com doze números, a vontade dos ponteiros
Tic tac
acima de qualquer outra. A tua vida espelhada nos minutos, nas horas, nos segundos anunciados, denunciados pelo toque produzido de cada vez que o pêndulo atinge o ponto máximo da sua deslocação lateral e
Tic tac
solta o som que te guia como o cão dos cegos. E, no entanto, o rangido do soalho, o zumbido do motor em funcionamento do frigorífico, os estalidos do forno a arrefecer, o crepitar da electricidade estática no televisor, o despedaçar das gotas da torneira que veda mal a precipitarem-se contra o lava-louças, a percussão dos teus saltos no chão de pedra, o deslizar da água nos canos por detrás das paredes, a voz e a deslocação do vizinho do andar de cima, as pombas a esvoaçar e a roçar contra os vidros, o movimento e as buzinas dos carros, tantos sons no terceiro andar que é na verdade um sexto porque há cave, rés-do-chão e o desnível da garagem e no entanto
Tic tac
É tudo o que oiço, que não deixo de ouvir, que parece preencher todo o espaço, toda a imagem do terceiro andar que é na verdade um sexto porque há cave, rés-do-chão e o desnível da garagem. Tapo os ouvidos e não deixo de ouvir o tique-taque, ressoa, ecoa, reverbera nos tímpanos. Quase desejo ser surdo para que finalmente deixasse o ruído para trás.

Mas depois percebo que mesmo sem o ouvir, continuaria a senti-lo.