quarta-feira, agosto 22, 2007

L. do D. #1 - Não sei se foi o mundo que fez o Pessoa assim, se foi o Pessoa que fez assim o mundo. Chego ao fim e, como acontece recorrentemente com muitas das coisas que gosto de ler, não sei explicar por que razão gosto. Até certo ponto, percebo que o autor escreva «E eu ofereço-te este livro porque sei que ele é belo e inútil. Nada ensina, nada faz crer, nada faz sentir.», exactamente da mesma forma que percebo «E porque este livro é absurdo, eu o amo; porque é inútil, eu o quero dar; e porque de nada serve querer to dar, eu to dou...». Mas só percebo porque «pus toda a alma em fazê-lo, mas não pensei nele fazendo-o, mas só em mim que sou triste e em ti que não és ninguém.»

O problema de retirar citações do Livro do Desassossego é que apetece copiá-lo praticamente todo. Contive-me e mesmo assim acabei com um post enorme. Acabei por recorrer ao bom senso e, portanto, nem retirei uma linha àquilo que tinha citado nem vou pôr nada gigantesco on-line: dividi em quatro postagens de tamanho aceitável. Aqui fica o primeiro.


«E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendênciapara ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos meus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância – irmãos siameses que não estão pegados.»

«Meditei hoje, num intervalor de sentir, na forma de prosa que uso. Em verdade, como escrevo? Tive, como muitos têm tido, a vontade pervertida de querer ter um sistema e uma norma. É certo que escrevi antes da norma e do sistema; nisso porém, não sou diferente dos outros.
Analisando-me à tarde, descubro que o meu sistema de estilo assenta em dois princípios, e imediatamente, à boa maneira de bons clássicos, erijo esses dois princípios em fundamentos gerais de todo o estilo: dizer o que se sente exactamente como se sente – claramente, se é claro; obscuramente, se é obscuro; confusamente se é confuso -; compreender que a gramática é um instrumento, e não uma lei.»

Livro do Desassossego, Fernando Pessoa