quinta-feira, agosto 30, 2007

L. do D. #3 - «Hesito em tudo, muitas vezes sem saber porquê. (...) Nunca tive a arte de estar vivo activamente. Errei sempre os gestos que ninguém erra; o que os outros nasceram para fazer, esforcei-me sempre para não deixar de fazer. Desejei sempre conseguir o que os outros conseguiram quase sem o desejar. Entre mim e a vida houve sempre vidros foscos: não soube deles pela vista, nem pelo tacto; nem a vivi essa vida ou esse plano, fui o devaneio do que quis ser, o meu sonho começou na minha vontade, o meu propósito foi sempre a primeira ficção do que nunca fui.
Nunca soube se era de mais a minha sensibilidade para a minha inteligência, ou a minha inteligência para a minha sensibilidade. Tardei sempre, não sei a qual, talvez a ambas, a uma ou outra, ou foi a terceira que tardou.»

«Vive a tua vida. Não sejas vivido por ela. Na verdade e no erro,no gozo e no mal-estar, sê o teu próprio ser. Só poderás fazer isso sonhando, porque a tua vida real, a tua vida humana é aquela que não é tua, mas dos outros. Assim, substituirás o sonho à vida e cuidarás apenas em que sonhes com perfeição. Em todos os teus actos da vida real, desde o de nascer até ao de morrer, tu não ages: és agido; tu não vives: és vivido apenas.
Torna-te, para os outros, uma esfinge absurda. Fecha-te, mas sem bater com a porta, na tua torre de marfim. E a tua torre de marfim és tu próprio.
E se alguém te disser que isto é falso e absurdo não o acredites. Mas não acredites também no que te digo, porque se não deve acreditar em nada.»

«O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A Natureza deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos.
Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometer a ignonímia de se ver.
O criador do espelho envenenou a alma humana.»

«Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-livro, e a poesia ou a literatura uma borboleta que, pousando-me na cabeça, me torne tanto mais ridículo quanto maior for a sua própria beleza.»

«É nobre ser tímido, ilustre não saber agir, grande não ter jeito para viver.»

Livro do Desassossego, Fernando Pessoa