A carrinha de nove lugares - segue por entre a confusão da estrada esburacada, povoada de outros carros caóticos. Os volantes tanto são à esquerda como à direita. Passam pickups com moles de pessoas na caixa: aparentemente funcionam como transporte de passageiros. Por entre as frinchas deixadas pelos veículos maiores, um enxame de pequenas motas e lambretas atrevidas.
De repente, no curto instante em que descolo a cara do vidro que me mantinha vidrado
I hope you know, I hope you know
That this has nothing to do with you
Vindo do rádio da carrinha. A horas de voo e de imediato estou no trânsito matinal de um dia de semana. De volta, o encanto perdido pela ocidentalização do som. Aquele som que só ouço na rádio quando as alternativas também não me interessam, incluído a de desligar por completo o aparelho. Estou em Lisboa outra vez e só quero voltar a ir-me.
A fuga só é retomada depois de entrar na zona do complexo. Não porque o tráfego local se reduza aos turistas de máquina fotográfica em riste. Hordas de japoneses, alemães, franceses pululam os locais, sempre em numerosos grupos acompanhados de guias locais. Mas porque a primeira paragem é, invariavelmente, Angkor Wat.
Wat porque é o templo. O templo da cidade capital, é esse o significado de Angkor. Ladeado de um canal de água quadrangular, um passadiço de pedra leva-nos à entrada. As diferentes portas são aquelas que depois dão acesso à zona interior e central do templo, onde se erguem as torres que pretendem homenagear os deuses. Um telemóvel dispara um toque polifónico e
It's personal, myself and I
We got some straightening out to do
Novamente arrancado como que de um sono profundo. Sonâmbulo, dou por mim de novo com as paredes inscritas à minha frente. O guia fala no seu inglês difícil, intercalando praticamente cada frase com ‘derstan’?, talvez pressentido o nosso alheamento que se traduzia em frequentes acenos com a cabeça e onomatopeias afirmativas. Daquilo que de facto percebi, pouco retive. Os nomes voaram-me da cabeça. Talvez nem sequer tenham chegado a entrar: é difícil ouvir as explicações históricas e mitológicas com tudo aquele bombardeamento visual à minha frente: é pior que discutir política durante um espectáculo de strip.
Na paragem seguinte, as mulheres com camisolas nas mãos a vir ter connosco
You buy somethi’, si’
e os miúdos a perseguir-nos com molhos de postais nas mãos
One dolá
A partir de certa altura, não preciso sequer de imaginar a selva a engolir os monumentos, a cidade que vejo. O Ta Prohm encarrega-se disso. As árvores sustêm as paredes, os muros. Ali, naquele pequeno troço, foi onde a Angelina Jolie filmou o Tomb Raider.
Tudo o que me lembra do resto do mundo, lá incrivelmente longe que possa estar, surge sob a forma da voz feminina standardizada, quase como se tivesse sido produzida em série, numa qualquer linha de montagem onde, decerto os trabalhadores monótonos trabalham ao som de vozes igualmente insípidas:
And I´m gonna miss you like a child misses their blanket
But I've gotta get a move on with my life
À tarde, o barco seguiu pelas margens barrentas, pelo canal construído pelos manglares densos e verdes. Cruzou-se com outros semelhantes, alguns com ocidentais alapados, outros com locais de chapéu em cone na cabeça. Depois de avançar pelo rio adentro, as casas começam as nascer no meio da água. Uma vida construída literalmente dentro de um rio.
No regresso, o sol quase posto, dava aquela coloração azul que é cada vez mais clara até se tornar no escuro da noite. Pela primeira vez senti um pouco de frio, molhado pela água da chuva e a receber o vento da deslocação de frente. O silêncio era total, apenas o motor falava por nós. No regresso, percebi que não percebia. Até onde pode ir esta nossa diferença? Até onde posso continuar a ser surpreendido? E então volto a ouvir:
It's time to be a big girl now
And big girls don't cry
De repente, no curto instante em que descolo a cara do vidro que me mantinha vidrado
I hope you know, I hope you know
That this has nothing to do with you
Vindo do rádio da carrinha. A horas de voo e de imediato estou no trânsito matinal de um dia de semana. De volta, o encanto perdido pela ocidentalização do som. Aquele som que só ouço na rádio quando as alternativas também não me interessam, incluído a de desligar por completo o aparelho. Estou em Lisboa outra vez e só quero voltar a ir-me.
A fuga só é retomada depois de entrar na zona do complexo. Não porque o tráfego local se reduza aos turistas de máquina fotográfica em riste. Hordas de japoneses, alemães, franceses pululam os locais, sempre em numerosos grupos acompanhados de guias locais. Mas porque a primeira paragem é, invariavelmente, Angkor Wat.
Wat porque é o templo. O templo da cidade capital, é esse o significado de Angkor. Ladeado de um canal de água quadrangular, um passadiço de pedra leva-nos à entrada. As diferentes portas são aquelas que depois dão acesso à zona interior e central do templo, onde se erguem as torres que pretendem homenagear os deuses. Um telemóvel dispara um toque polifónico e
It's personal, myself and I
We got some straightening out to do
Novamente arrancado como que de um sono profundo. Sonâmbulo, dou por mim de novo com as paredes inscritas à minha frente. O guia fala no seu inglês difícil, intercalando praticamente cada frase com ‘derstan’?, talvez pressentido o nosso alheamento que se traduzia em frequentes acenos com a cabeça e onomatopeias afirmativas. Daquilo que de facto percebi, pouco retive. Os nomes voaram-me da cabeça. Talvez nem sequer tenham chegado a entrar: é difícil ouvir as explicações históricas e mitológicas com tudo aquele bombardeamento visual à minha frente: é pior que discutir política durante um espectáculo de strip.
Na paragem seguinte, as mulheres com camisolas nas mãos a vir ter connosco
You buy somethi’, si’
e os miúdos a perseguir-nos com molhos de postais nas mãos
One dolá
A partir de certa altura, não preciso sequer de imaginar a selva a engolir os monumentos, a cidade que vejo. O Ta Prohm encarrega-se disso. As árvores sustêm as paredes, os muros. Ali, naquele pequeno troço, foi onde a Angelina Jolie filmou o Tomb Raider.
Tudo o que me lembra do resto do mundo, lá incrivelmente longe que possa estar, surge sob a forma da voz feminina standardizada, quase como se tivesse sido produzida em série, numa qualquer linha de montagem onde, decerto os trabalhadores monótonos trabalham ao som de vozes igualmente insípidas:
And I´m gonna miss you like a child misses their blanket
But I've gotta get a move on with my life
À tarde, o barco seguiu pelas margens barrentas, pelo canal construído pelos manglares densos e verdes. Cruzou-se com outros semelhantes, alguns com ocidentais alapados, outros com locais de chapéu em cone na cabeça. Depois de avançar pelo rio adentro, as casas começam as nascer no meio da água. Uma vida construída literalmente dentro de um rio.
No regresso, o sol quase posto, dava aquela coloração azul que é cada vez mais clara até se tornar no escuro da noite. Pela primeira vez senti um pouco de frio, molhado pela água da chuva e a receber o vento da deslocação de frente. O silêncio era total, apenas o motor falava por nós. No regresso, percebi que não percebia. Até onde pode ir esta nossa diferença? Até onde posso continuar a ser surpreendido? E então volto a ouvir:
It's time to be a big girl now
And big girls don't cry
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