Seria de esperar que, por esta altura do campeonato, os venezuelanos já tivessem uma certa desconfiança pela substância negra que comanda o quotidiano de milhares de milhões de criaturas por esse mundo fora. Não é preciso recuar muito na história do país para esbarrar na grave situação económica, em larga escala, fomentada pelas abundantes reservas de hidrocarbonetos: basta ir até à época de setenta, talvez a que melhor exemplifica.
Fruto do primeiro choque petrolífero, as receitas com a exploração de petróleo literalmente explodiram de um momento para o outro, inundando os cofres públicos de uma riqueza nunca antes vista. No entanto, essa riqueza não se traduziu no desenvolvimento e no bem-estar da população, tal como era previsto. Aliás, este fenómeno que, em certa forma, é um paradoxo, atinge muitos outros países que possuem grandes reservas de recursos naturais e que não dão sinais de conseguir escapar à pobreza.
“La Gran Venezuela”
É fácil argumentar que, sentados numa pipa de massa, os venezuelanos tinham mais do que o direito, tinham uma quase obrigação moral de aproveitar esta oportunidade caída dos céus para dar um empurrão decisivo ao seu país e transformá-lo na “Gran Venezuela” idealizada por Simón Bolívar.
Foi com esta perspectiva em mente que foram desenhadas intervenções ao tecido económico e empresarial, no sentido de desenvolver indústrias pesadas como a petroquímica e a metalúrgica: por um lado, porque abundância de receitas de petróleo forneceria os investimentos iniciais necessários à criação dessas indústrias e, por outro lado, porque os hidrocarbonetos seriam matéria-prima e fonte de energia necessária ao seu funcionamento.
Os resultados, no entanto, frustraram as expectativas. Regra geral, os países que experienciaram um aumento significativo do volume de exportações associado à exploração de recursos naturais, viram a sua taxa de câmbio responder com uma apreciação em termos reais. Esta apreciação atinge sobretudo os sectores agrícolas e das manufacturas, cuja exportação se torna mais cara. Adicionalmente, o acréscimo de rendimento que passa a estar ao dispor da economia é, muitas vezes, responsável pelo aumento dos preços de bens não transaccionáveis, tais como os serviços. Finalmente, o investimento na área da exploração do petróleo está muito ligado à intervenção de empresas estrangeiras que possuem o conhecimento necessário e que não fazem muitas tenções de reinvestir os seus ganhos localmente (a não ser que seja para mais exploração); gera pouco emprego e os empregos mais qualificados não são, na maioria das vezes, preenchidos por mão-de-obra do país.
Para melhor descrever o caso Venezuelano, basta somar algumas idiossincrasias. Em primeiro lugar, grande parte das empresas nacionais que beneficiaram dos subsídios eram grandes monstros, muito pouco produtivos e que se limitavam a absorver os enormes montantes para fazerem face às divídas que com facilidade acumulavam. Em segundo lugar, esta reorganização sectorial da actividade económica, implementada por diploma legal, contribuiu para atrofiar ainda mais o sector primário, para lá daquilo que os efeitos da apreciação real da taxa de câmbio por si só fariam. O cenário torna-se pior se considerarmos que a tradicional agricultura, de escala familiar, era a actividade com que muitos contavam para a sobrevivência diária.
Onde está a minha fatia do bolo?
Com a extrema centralização do poder de decisão sobre um montante gigantesco de dinheiro num conjunto muito restrito de pessoas, tornaram-se extremamente proveitosas as actividades de lobbying e de procura de rendas por parte de um grande conjunto de agentes económicos. Mais: na senda de apoio que legitimasse e mantivesse a estrutura governamental de pé, os tomadores de decisão rapidamente se viram forçados a ter que agradar e satisfazer estes avanços por parte de uma estrutura oligárquica que controlava importantes sectores da actividade económica, bem como as Forças Armadas. Foi assim que surgiu um movimento generalizado de jobs for the boys que, também nós portugueses, tão bem conhecemos.
Se o aumento dos gastos públicos já era previsível tendo em conta a estratégia pretendida de investimento na industrialização, ainda mais vincado se tornou com esta expansão do emprego no sector público. E, se a tudo isto, ainda juntarmos o arranque o do Welfare State e das consequentes transferências do Estado para as famílias, então podemos ver como se consome tamanha riqueza.
O ponto fulcral é que esta estratégia de aumento dos gastos para alimentar o apetite da sociedade civil, do empresário ao empregado, da figura pública ao zé-ninguém, é um processo com o qual qualquer tomador de decisão nas mesmas circunstâncias se vê confrontado. É praticamente uma condição necessária para que consiga manter-se no poder porque todos querem o seu quinhão da riqueza imediata.
O declínio
Dois ou três anos após o choque petrolífero, o preço do barril de petróleo estava consideravelmente mais baixo. Para uma economia literalmente movida a petróleo, a consequência imediata foi a quebra drástica das receitas estatais e, pela primeira vez desde a alta dos preços, o Estado estava a gastar mais do que arrecadava. Mas nada disso fez com que os grupos de interesse e a sociedade civil deixassem de exigir as regalias com que tinham sido aliciados e a que, entretanto, se tinham habituado.
Uma solução para este problema seria recorrer aos detestáveis impostos. No entanto, essa era, à partida, uma estratégia condenada ao fracasso. Basta ver que a Venezuela não tinha uma Administração Fiscal na verdadeira acepção da palavra antes dos choques petrolíferos. As suas receitas limitavam-se a pouco mais do que os direitos aduaneiros. Por isso, o arranque do Welfare State só foi possível com as receitas da exploração de petróleo: não havia receitas fiscais suficientes anteriormente. Depois de começar a entrar tamanha riqueza, era muito difícil instaurar uma política de recolha de impostos. Primeiro, porque as pessoas não iriam aceitá-lo: se o Estado nada em dinheiro, por que carga de água hei-de eu ter que contribuir com mais? Segundo, porque não havia uma máquina fiscal que tivesse o know-how para, de um momento para o outro, conseguir levar a cabo uma política fiscal.
E foi assim que começou o endividamento. Ironicamente, usando receitas futuras de petróleo como colateral. Na década de oitenta, a Venezuela era um dos países do mundo com um maior nível de endividamento e cuja taxa de crescimento estava agora em zona negativa.
O “Nacional Chéverismo”
Agora, como é possível, volvidos cerca de trinta anos, ver a Venezuela voltar a bater na mesma tecla, clamando, na voz do seu Presidente, por um barril de petróleo a 100 dólares? A resposta está nas encostas de Caracas e das outras grandes cidades, onde pululam as favelas, um fenómeno que, infelizmente, embora largamente associado ao Brasil, é bastante mais viajado. O pé-descalço que vive numa barraca sujeita a ser varrida pela próxima enxurrada causada por uma chuvada tropical, não quer saber para nada das ilacções que se podem retirar de tempos passados. Vive em condições péssimas, possivelmente não trabalha e, mesmo que o faça, não deve ganhar nada de jeito. Pior: olha para o lado e vê pessoas com dinheiro a gastarem um dia ao almoço o que ele não ganha em meses, enquanto ele terá que voltar para o barraco, passando por locais onde a criminalidade é um flagelo totalmente fora de controlo, onde se mata por um par de sapatos.
Acenem-lhe com uma qualquer promessa e ele aceita logo. Nem sequer precisa ser muito generosa ou elaborada. Só precisam de lhe explicar como vão conseguir que ele tenha uma casa condigna e que passe a poder ir ao médico ou à escola ou a ter um trabalho. E aí é preciso referir o petróleo. E é aí que ele responde que o petróleo é “chévere”. E também que Hugo Chávez é o novo Símón Bolívar que, sentado em cima de um barril, vai libertar a América Latina do jugo económico imposto pelos países ricos.
Fruto do primeiro choque petrolífero, as receitas com a exploração de petróleo literalmente explodiram de um momento para o outro, inundando os cofres públicos de uma riqueza nunca antes vista. No entanto, essa riqueza não se traduziu no desenvolvimento e no bem-estar da população, tal como era previsto. Aliás, este fenómeno que, em certa forma, é um paradoxo, atinge muitos outros países que possuem grandes reservas de recursos naturais e que não dão sinais de conseguir escapar à pobreza.
“La Gran Venezuela”
É fácil argumentar que, sentados numa pipa de massa, os venezuelanos tinham mais do que o direito, tinham uma quase obrigação moral de aproveitar esta oportunidade caída dos céus para dar um empurrão decisivo ao seu país e transformá-lo na “Gran Venezuela” idealizada por Simón Bolívar.
Foi com esta perspectiva em mente que foram desenhadas intervenções ao tecido económico e empresarial, no sentido de desenvolver indústrias pesadas como a petroquímica e a metalúrgica: por um lado, porque abundância de receitas de petróleo forneceria os investimentos iniciais necessários à criação dessas indústrias e, por outro lado, porque os hidrocarbonetos seriam matéria-prima e fonte de energia necessária ao seu funcionamento.
Os resultados, no entanto, frustraram as expectativas. Regra geral, os países que experienciaram um aumento significativo do volume de exportações associado à exploração de recursos naturais, viram a sua taxa de câmbio responder com uma apreciação em termos reais. Esta apreciação atinge sobretudo os sectores agrícolas e das manufacturas, cuja exportação se torna mais cara. Adicionalmente, o acréscimo de rendimento que passa a estar ao dispor da economia é, muitas vezes, responsável pelo aumento dos preços de bens não transaccionáveis, tais como os serviços. Finalmente, o investimento na área da exploração do petróleo está muito ligado à intervenção de empresas estrangeiras que possuem o conhecimento necessário e que não fazem muitas tenções de reinvestir os seus ganhos localmente (a não ser que seja para mais exploração); gera pouco emprego e os empregos mais qualificados não são, na maioria das vezes, preenchidos por mão-de-obra do país.
Para melhor descrever o caso Venezuelano, basta somar algumas idiossincrasias. Em primeiro lugar, grande parte das empresas nacionais que beneficiaram dos subsídios eram grandes monstros, muito pouco produtivos e que se limitavam a absorver os enormes montantes para fazerem face às divídas que com facilidade acumulavam. Em segundo lugar, esta reorganização sectorial da actividade económica, implementada por diploma legal, contribuiu para atrofiar ainda mais o sector primário, para lá daquilo que os efeitos da apreciação real da taxa de câmbio por si só fariam. O cenário torna-se pior se considerarmos que a tradicional agricultura, de escala familiar, era a actividade com que muitos contavam para a sobrevivência diária.
Onde está a minha fatia do bolo?
Com a extrema centralização do poder de decisão sobre um montante gigantesco de dinheiro num conjunto muito restrito de pessoas, tornaram-se extremamente proveitosas as actividades de lobbying e de procura de rendas por parte de um grande conjunto de agentes económicos. Mais: na senda de apoio que legitimasse e mantivesse a estrutura governamental de pé, os tomadores de decisão rapidamente se viram forçados a ter que agradar e satisfazer estes avanços por parte de uma estrutura oligárquica que controlava importantes sectores da actividade económica, bem como as Forças Armadas. Foi assim que surgiu um movimento generalizado de jobs for the boys que, também nós portugueses, tão bem conhecemos.
Se o aumento dos gastos públicos já era previsível tendo em conta a estratégia pretendida de investimento na industrialização, ainda mais vincado se tornou com esta expansão do emprego no sector público. E, se a tudo isto, ainda juntarmos o arranque o do Welfare State e das consequentes transferências do Estado para as famílias, então podemos ver como se consome tamanha riqueza.
O ponto fulcral é que esta estratégia de aumento dos gastos para alimentar o apetite da sociedade civil, do empresário ao empregado, da figura pública ao zé-ninguém, é um processo com o qual qualquer tomador de decisão nas mesmas circunstâncias se vê confrontado. É praticamente uma condição necessária para que consiga manter-se no poder porque todos querem o seu quinhão da riqueza imediata.
O declínio
Dois ou três anos após o choque petrolífero, o preço do barril de petróleo estava consideravelmente mais baixo. Para uma economia literalmente movida a petróleo, a consequência imediata foi a quebra drástica das receitas estatais e, pela primeira vez desde a alta dos preços, o Estado estava a gastar mais do que arrecadava. Mas nada disso fez com que os grupos de interesse e a sociedade civil deixassem de exigir as regalias com que tinham sido aliciados e a que, entretanto, se tinham habituado.
Uma solução para este problema seria recorrer aos detestáveis impostos. No entanto, essa era, à partida, uma estratégia condenada ao fracasso. Basta ver que a Venezuela não tinha uma Administração Fiscal na verdadeira acepção da palavra antes dos choques petrolíferos. As suas receitas limitavam-se a pouco mais do que os direitos aduaneiros. Por isso, o arranque do Welfare State só foi possível com as receitas da exploração de petróleo: não havia receitas fiscais suficientes anteriormente. Depois de começar a entrar tamanha riqueza, era muito difícil instaurar uma política de recolha de impostos. Primeiro, porque as pessoas não iriam aceitá-lo: se o Estado nada em dinheiro, por que carga de água hei-de eu ter que contribuir com mais? Segundo, porque não havia uma máquina fiscal que tivesse o know-how para, de um momento para o outro, conseguir levar a cabo uma política fiscal.
E foi assim que começou o endividamento. Ironicamente, usando receitas futuras de petróleo como colateral. Na década de oitenta, a Venezuela era um dos países do mundo com um maior nível de endividamento e cuja taxa de crescimento estava agora em zona negativa.
O “Nacional Chéverismo”
Agora, como é possível, volvidos cerca de trinta anos, ver a Venezuela voltar a bater na mesma tecla, clamando, na voz do seu Presidente, por um barril de petróleo a 100 dólares? A resposta está nas encostas de Caracas e das outras grandes cidades, onde pululam as favelas, um fenómeno que, infelizmente, embora largamente associado ao Brasil, é bastante mais viajado. O pé-descalço que vive numa barraca sujeita a ser varrida pela próxima enxurrada causada por uma chuvada tropical, não quer saber para nada das ilacções que se podem retirar de tempos passados. Vive em condições péssimas, possivelmente não trabalha e, mesmo que o faça, não deve ganhar nada de jeito. Pior: olha para o lado e vê pessoas com dinheiro a gastarem um dia ao almoço o que ele não ganha em meses, enquanto ele terá que voltar para o barraco, passando por locais onde a criminalidade é um flagelo totalmente fora de controlo, onde se mata por um par de sapatos.
Acenem-lhe com uma qualquer promessa e ele aceita logo. Nem sequer precisa ser muito generosa ou elaborada. Só precisam de lhe explicar como vão conseguir que ele tenha uma casa condigna e que passe a poder ir ao médico ou à escola ou a ter um trabalho. E aí é preciso referir o petróleo. E é aí que ele responde que o petróleo é “chévere”. E também que Hugo Chávez é o novo Símón Bolívar que, sentado em cima de um barril, vai libertar a América Latina do jugo económico imposto pelos países ricos.
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