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A loucura da guerra - É conhecida a forma como a rodagem de Aocalypse Now se arrastou para lá dos orçamentos e prazos previstos. Os helicópteros da força Aérea filipina, utilizados na rodagem, eram constantemente requisitados para combate pelo presidente Ferdinando Marcos; um tufão destruiu vários cenários, que tiveram de ser reconstruídos, Martin Sheen teve um ataque cardíaco quase fatal; Marlon Brando chegou às Filipinas sem intenção de decorar o seu papel.
A rodagem demorou 16 meses e quase custou a falência de Francis Ford Coppola. Nos meus momentos de entusiasmo mais delirante, parece-me que todo esse esforço foi recompensado quando um rapaz (eu) viu Apocalypse Now projectado no lençol do Centro Paroquial de uma vila no Alentejo. Nessa noite, após a sessão gratuita do Inatel, tive a sensação de que tinha visto o filme da minha vida. Tinha talvez 11 ou 12 anos e todos os filmes que via deixavam-me num encantamento. Aquele, no entanto, tinha sido diferente. Ao atravessar as ruas da minha terra, voltar para casa, adormecer e acordar no dia seguinte, foi nisso que pensei. E empre que o revi, cimentei a convicção de que Apocalypse Now é realmente o filme da minha vida ainda incompleta. Nos anos que hei-de viver, parece-me difícil que algum filme possa voltar a causar tanto efeito em como Apocalypse Now.
A tensão da cena inicial, em que o Capitão Willard (Martin Sheen) está no quarto de um hotel em Saigão – ao som de “The End” dos Doors -, em que esmurra o espelho, delira e espera febrilmente uma missão, é a imagem perfeita do momento em que se aguarda qualquer coisa, que não se sabe o que irá ser, mas que se compreende que seja grandiosa, como um filho, um romance ou uma viagem. Depois, há o caminho e a loucura, a forma como este Vietname de Coppola se aproxima da vida, a ansiedade asfixiante da paz, a destruição, a sobrevivência ténue entre todas as questões levantadas, a morte, a submersão absoluta no Coração das Trevas.
«Adoro o cheiro a napalm de manhã», diz o coronel Kilgore (Robert Duvall). E nós estamos preparados para assistir a tudo. A ‘Cavalgada das Valquírias’, de Wagner, repete-se na cabeça. E, por fim, quando chegamos ao último reduto do coronel Kurtz (Brando) e ficamos na penumbra a ouvi-lo, percebemos que é necessário ser louco aos olhos do mundo para dizer a verdade pura, porque foi o mundo inteiro que enlouqueceu.
Quase todos os anos vejo o Apocalypse Now pelo menos uma vez e sinto que foi filmado apenas para mim. Por momentos, deixo que a guerra se acalme e, depois, acredito que talvez seja esse o sentimento que os filmes da vida provocam sempre.»
José Luís Peixoto, Revista Tabu a 21/10/06