Palavras para quê? Miguel Sousa Tavares, à sexta, no Público
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Patriotas - Quando eu tinha para aí uns 14 anos e a paixão para jogar futebol me consumia de manhã à noite, fui ter com o meu pai, que era o ser mais terra-a-terra do planeta, e disse-lhe que queria ser futebolista. E ele respondeu-me, demolidor:”Filho, só vai para futebolista quem não sabe fazer mais nada.” Tenho-me lembrado disso nestes dias, quando vejo os jogadores da selecção nacional transformados em heróis nacionais, sem que nada, rigorosamente nada, tenham feito até à data que o justifique, e todavia alvos de todas as homenagens e vassalagens, incluindo as do primeiro-ministro e do próprio Presidente da República, que se deslocaram ao estágio da selecção para dizerem aos heróis da pátria que a nação, para além de lhes dar todos os luxos, conforto e condições de trabalho, para além de os remunerar com generosíssimos prémios em caso de vitória, para além de lhes proporcionar fabulosos contratos publicitários ostentado a camisola das quinas e enxameando com os seus retratos todas as esquinas, para além de ter investido centenas de milhões de contos para organizar em Portugal um Campeonato Europeu de modo a que eles tivessem finalmente hipótese de ganhar uma vez na vida, para além de tudo isso e apesar de tudo isso, a nação nada lhes exigia. Apenas o favor de disputarem uns quantos jogos de futebol.
Regressado de uma semana fora e mesmo sobre a hora do enxovalho futebolístico com a Grécia, fui dar com um país transfigurado por uma histeria patriótica de que nem nos tempos áureos do salazarismo há notícia. Táxis, transportes públicos, carros particulares, cafés, restaurantes, monumentos, casas, tudo, rigorosamente tudo, ostenta a bandeira nacional, como se uma febre endémica tivesse subitamente atacado o país inteiro. Todos os “outdoors”, os “spots” televisivos, os anúncios da rádio e da imprensa vomitam sem cessar o Scolari, o Figo, o Rui Costa, o Nuno Gomes, heróis do mar, patriotas sem igual, portugueses de excepção – pagos a peso de ouro.
Numa promoção televisiva, Marcelo Rebelo de Sousa gaba-se de ter partido dele a genial ideia e regozija-se porque até Jorge Sampaio, seu longínquo adversário, aderiu a ela. E, por entre mais uma cerimónia de condecorações a forçados heróis nacionais, a pretexto do 10 de Junho, o Presidente apela a que as bandeiras permaneçam em exibição mesmo para além do Euro e do mais que provável fiasco da selecção nacional. Bendita selecção, bendito brasileiro pago a 35 mil contos por mês, que, de uma penada, nos restituíram o orgulho patriótico e nos levam a acreditar que, como diz o Presidente, o Euro é verdadeiramente um “desígnio nacional!”.
Não é uma justiça em que acreditemos, não é uma educação de nível europeu, não é um sistema fiscal que honre os pagadores de impostos, não é uma investigação científica que nos engrandeça, não é uma política externa de que nos orgulhemos, não é uma saúde e uma assistência social que nos tranquilize, não é nada disso. É a organização do Euro, as autarquias que se arruinaram para construir estádios para um público que daqui a 15 dias desaparecerá de vez, todas as forças de segurança reequipadas e pagas em horas extraordinárias para vigiar os bêbados ingleses, e o ministro Arnaut, impante da prosápia, a declarar-se o “homem de obra” contra os “velhos do Restelo”.
Eis o desígnio nacional. Quanto aos heróis, esqueçam o Saramago, o Siza, o Damásio, a Maria João Pires, o Fernando Nobre, o Sobrinho Simões, o Manuel Antunes, o Mário Soares. Os heróis do “patriotismo moderno”, como lhe chamou o Presidente, são o Scolari, o Figo, o Rui Costa. Os que escolheram o futebol porque não sabiam fazer mais nada de útil. A pátria curva-se perante eles e o seu esforço desmedido. A nação cobre as suas varandas , as suas esquinas, os seus cafés, os seus transportes com a bandeira nacional para prestar homenagem ao seu generoso patriotismo.
Sábado passado, à hora em que os heróis da nação eram enxovalhados perante uma selecção de futebol grega de terceira categoria, eu aterrava em Lisboa, vindo da antiga colónia portuguesa de S. Tomé e Príncipe, hoje um arremedo de país independente, virtualmente inviável pela incompetência dos seus e a fatalidade politicamente correcta dos “ventos da história”. Lá, vivi uma semana com uma minicolónia de expatriados portugueses, desses que carregam consigo essa antiga e inexplicável doença incurável que é a paixão de certos homens brancos pela África negra. Levaram consigo, vivem e dormem com as coisas que nos marcam e que nunca esquecemos, as saudades da luz de Lisboa, das sardinhas, do futebol, do cozido, da música, dos campos do Alentejo, das praias do Algarve, das vinhas do Douro.
A pátria, para eles, é uma doença que levaram para África, uma saudade indizível que lhes molha o olhar no aeroporto, à chegada e à partida dos aviões que vêm de Lisboa, uma generosidade e uma alegria desmedidas com que recebem os que tocam e fogem, os que apenas estão de passagem onde eles estão de espera. Vieram com as mulheres, os filhos, com as músicas, os filmes, os livros, o telemóvel, a Internet, tudo o que hoje existe para silenciar o que sempre existiu e é invencível. Ali, longe de tudo o que se habituaram a conhecer e a amar, expostos a um clima impiedoso, às suas febres e doenças, ao desespero de uma organização de vida onde o mais simples se torna complicado, isolados no mais fundo de si mesmos pela solidão e pela distância, essa pequena colónia portuguesa de S. Tomé e Príncipe, independente mantém, cultiva e serve uma espécie de fidelidade a Portugal que ninguém sabe, ninguém avalia e ninguém jamais recompensará.
São quadros da embaixada de Portugal, da Caixa Geral de Depósitos, da PT, da TAP, do Instituto Camões, da RTP, da AMI. Servem Portugal longe dos olhares e dos aplausos, na distância, no isolamento, no desconhecimento dos portugueses. E representam Portugal no que ele tem de melhor – a capacidade de adaptação à diversidade e às dificuldades, a generosidade e a hospitalidade, o optimismo e a alegria perante a descoberta e o mundo novo. Estes portugueses de S. Tomé e Príncipe foram, durante a semana que passou, a minha selecção nacional, a minha bandeira, o meu orgulho de ser português. Porque ninguém jamais escreverá os seus nomes ou exporá os seus rostos em campanhas de publicidade a apelar ao patriotismo, porque ninguém desfraldará bandeiras nacionais em sua honra e porque, se calhar, nem eles próprios sabem o quanto merecem de reconhecimento, que aqui venho, esta semana de histeria patriótica pelos heróis nacionais do Alcochete, dar testemunho destes outros, silenciosos, distantes e desconhecidos, portugueses genuínos.
E a esse vazio e patético “slogan” de “Força, Portugal!”, verdadeiro grito de impotência de vencidos disfarçados de vencedores, no futebol como na política, eu contraponho um outro grito, este silencioso, como um murmúrio – “leve, leve”, como se diz em S. Tomé: “Querido Portugal.” Apesar de tudo, apesar de toda a descrença, “apesar das ruínas e da morte, onde sempre acabou cada ilusão”, querido Portugal, que na mais inesperada e distante paisagem de África ou do mundo remoto guardas em ti, escondido como o mais precioso dos segredos, a razão absurda para te amar-mos assim.»