quarta-feira, março 31, 2004

Dicção – Toda a profissão tem os seus truques, toda a roca o seu fuso. Eis alguns exemplos de como os profissionais da comunicação treinam a sua dicção e (des)travam a língua:

“Qual é o doce que é mais doce que o doce de batata-doce? Respondi que o doce que é mais doce que o doce de batata-doce é o doce que é feito com o doce do doce da batata-doce.”

“Sabendo o que sei e sabendo que sabes e o que não sabes e o que não sabemos, ambos saberemos se somos sábios, sabidos ou simplesmente saberemos se somos sabedores.”

“O tempo perguntou ao tempo qual é o tempo que o tempo tem. O tempo respondeu ao tempo que não tem tempo para dizer ao tempo que o tempo do tempo é o tempo que o tempo tem.”

“A sábia não sabia que o sábio sabia que o sabiá sabia que o sábio não sabia que o sabiá não sabia que a sábia não sabia que o sabiá sabia assobiar.”

“O desinquivincavacador das caravelarias desinquivincavacaria as cavidades que deveriam ser desinquivincavacadas. “

“Perlustrando patética petição produzida pela postulante, prevemos possibilidade para pervencê-la porquanto perecem pressupostos primários permissíveis para propugnar pelo presente pleito pois prejulgamos pugna pretérita perfeitíssima.”

“Disseram que na minha rua há paralelepípedos feitos de paralelogramos. Seis paralelogramos tem um paralelepípedo. Mil paralelepípedos têm mil paralelogramos. Então uma paralelepipedovia é uma paralelogramolândia?”

terça-feira, março 30, 2004

Achado – Aqui, no Palavras Insurrectas, temos em elevada estima os nossos leitores. Sobretudo aqueles que, com o passar das postas devidamente colocadas neste espaço, nos vão presenteando com a sua assiduidade, não só na respectiva leitura, mas também na crítica, análise e na advertência para possibilidades temáticas a explorar.

Assim sendo, é com muito gosto que declaro ter conseguido satisfazer um pedido pessoal que me foi realizado há cerca de quinze dias. Queixava-se a utente desta página, a propósito da entrada do dia 14 do corrente mês, que era uma pessoa desafortunada a tal ponto que, enquanto eu tinha uma música na cena pop internacional com o meu nome a fazer de título, ela do mesmo não se podia vangloriar.

Permita-me expor o seu engano, estimada amiga. De facto, existe mesmo uma música que, convenientemente, coloquei aqui, para que dela possa desfrutar no conforto do lar e, caso ache igualmente interessante, aqui está a letra da mesma.

Resta-me terminar manifestando o meu agrado por termos sido capazes de levar a cabo tão importante e bonita tarefa que, estou certo, merecerá a maior atenção por parte do seu receptor, bem como lhe trará alegria e boa-disposição ao quotidiano.

Ora essa, não tem nada que agradecer, foi com muito gosto.

segunda-feira, março 29, 2004

Rir – Quanto mais vou andando, pensando e ouvindo os relatos de quem de ti fala, mais me dou conta de quanto iria, decerto, discordar dos teus pontos de vista. Em certos aspectos, seríamos que nem água e azeite, completamente díspares. Porém, também me dou conta de que foste tu que me deste uma das maiores lições da vida.

Estamos sentados à mesa. Pais nas duas cabeceiras, avós de frente para os netos, nos lados. Contas qualquer coisa, o meu copo de Coca-Cola é vinho, o cálcio para os ossos da avó faz a água parecer ter sabão, a tua cerveja é mijo. Gozavas com o início dos corpos nus na televisão; com a moda dos "Yorkshire Terrier", as senhoras que iam passear as ratas para a praia; os kispos viraram “cuspos”. Tenho pena de não me lembrar de mais.

Saber rir da vida, o humor é hoje, para mim, uma condição sine qua non do dia-a-dia, uma demonstração de amizade, inteligência, boa-disposição. Sobretudo saber rir de nós próprios, das coisas que nos acontecem.

domingo, março 28, 2004

Têm-me perguntado a razão da distinção que faço entre música e jazz nos links que, pacientemente, tenho vindo a acrescentar nos últimos dias (já agora, que tal estão, que tal estão…?). Não querendo que uma só alma fique com uma dúvida por muito pequena que seja, cá vai a minha explicação. Sentem-se confortavelmente, pés para cima, relaxem e… boa sorte.

Paralelos – A essência da maioria do jazz é só uma: criar uma estrutura fixa, rígida, a harmonia da música, sobre a qual é permitido aos solistas dar azo à sua imaginação, improvisar a melodia que ouvimos. É como se fosse criado um suporte, uma rede de segurança para podermos experimentar as loucuras, os voos que quisermos sem correr o risco de uma queda fatal.

Não quero, com o que disse, colocar o jazz numa posição de superioridade em relação ao tantos outros estilos, longe de mim. Apenas pretendo diferenciá-lo, expor a sua particularidade, a sua idiossincrasia. Aliás, quem o conhece bem, sabe perfeitamente isto que vou dizer agora: sendo ele um tipo que adora ouvir coisas diferentes e retirar o melhor de cada para aplicar em si mesmo, não é, de todo, adepto de etnocentrismo.

A minha abordagem é, no entanto, outra. A grande diferença do jazz reside numa similitude. Estranho? Nada disso. Ou não planeássemos em linhas gerais as traves mestras que vão orientar a nossa existência de acordo com os nossos sonhos e ambições. Os acontecimentos, esses, ocorrem ao sabor do vento e de acordo com a nossa disposição do momento, a inspiração que nos pode ajudar ou atraiçoar. Acima de tudo, somos uns improvisadores natos, com as armas que nos foram fornecidas pela Natureza.

E, por isso, o coloquei fora da categoria “música”. Porque é também uma forma de vida.

sábado, março 27, 2004

Traduções – Que as traduções dos títulos dos filmes para português deixam, muitas vezes, algo a desejar, já todos sabemos. Não tenho nada a acrescentar. Agora, há coisas que passam para lá das marcas. Graças ao Canal Hollywood, fiquei a saber a fantástica tradução que o filme “Dennis the Menace” tem em espanhol:

“Daniel el travieso” – isto roça os limites da difamação, pá…

sexta-feira, março 26, 2004

Comunicar – Desenvolvemos os esforços todos, possíveis em imaginários, para nos tornarmos inteligíveis, para nos fazermos entender. Falamos mais alto, pausadamente, com palavras mais simples, descrevemos o significado dos termos técnicos, usamos pontuação na escrita, evitamos as frases longas. Uma autêntica panóplia de técnicas do dia-a-dia.

Isto porque, como já dizia um tipo ligado a estas coisas, a comunicação é algo de altamente improvável. Só podemos entender uma mensagem mediante um contexto. E o contexto de cada um é, em grande parte, aquilo que a sua memória, depurando ao longo dos tempos, resolveu guardar. O receptor necessita dum código para a interpretar como o emissor a quis ver interpretada. Neste sentido, a comunicação é muito mais a disseminação de informação num sistema que uma simples transferência.

É por isso que, na génese, comunicar é pôr em comum.

quinta-feira, março 25, 2004

Utilidade – Não se trata de gostar de putos como quem quer ter uma tonelada de filhos e viver numa casa atafulhada de fraldas, biberons e brinquedos. Muito menos (cruzes, credo!) gostar de putos à la Casa Pia. Trata-se de, pura e simplesmente, reconhecer que nos vão ser muito úteis daqui por alguns anos.

Senão quem me paga a reforma, ahn?

quarta-feira, março 24, 2004

Problemas de visão – Diz que a Irmã Lúcia celebrou mais um aniversário, aqui ficam os meus parabéns, atingiu uma idade bonita e digníssima de respeito (embora já não me lembre ao certo qual é). Contudo, tanta vela junta não pode deixar de acarretar os seus problemas, tais como os óculos que traz apoiados no nariz, como todos os que usam esses aparelhos e que, no caso dela, por se destacarem violentamente, candidatam-se fortemente à alcunha de fundos de garrafa.

Pergunto eu: já usaria a Irmã aquelas gafas aquando da tão aclamada aparição? É que eu, com umas bizarmas daquelas, no mínimo, seria capaz de confundir um elefante com uma divindade…

terça-feira, março 23, 2004

Ambição – Se é verdade que os dicionários associam o vocábulo “ambição” com um “desejo veemente de riquezas, glórias” e coisas do género, também não é menos verdade que nós somos uns animais a quem, feliz ou infelizmente, cada um julgará como quiser, nos foi dada a capacidade de analisar, ver para lá do significado tradicional das palavras. Ou, se calhar, não.

Porque gasto o meu latim a falar disto hoje? É simples. Porque me faz confusão, mete medo e, confesso, alguma pena, quando vejo que há muito boa gente que nunca deixou de o interpretar tal qual a definição que avancei em cima. São, regra geral, criaturas extremamente desinteressantes, a sua vida gira em torno de muito pouca coisa. Falam de bons empregos, dinheiro e carreira e ficam por aí.

O que, por si, mesmo não tem mal nenhum. Não é nenhum crime querer ser bem sucedido profissionalmente. E essa é, efectivamente, uma das vertentes que compõem este substantivo abstracto. Mas, por outro lado, não pode ofuscar as demais. Caso contrário, estaremos apenas a querer corresponder à tão nossa necessidade de satisfazer as exigências de aparentar sempre algo de muito bom, de querer exibir, mostrar.

Pergunta: e o que são as demais? Tanta coisa…Posso avançar algumas minhas, se quiserem. Primeiro, algumas simples. Por exemplo, viajar o máximo possível. Ou, conhecer outras perspectivas deste nosso mundo. Nunca permitir que a imaginação esgote e esta página fique sem temas ou que música deixe de se fazer ouvir à minha volta. Agora, algumas complicadas. Se a situação surgir, dar o máximo enquanto pai e não somente sufocá-lo no materialismo a que o meu bruto ordenado se pode dar ao luxo. Querer ser bem sucedido nas relações de amizade e amor, corresponder.

Sobretudo, expelir essa convicção de que só somos gente se tivermos um emprego muito bom e ganharmos um rio de dinheiro. Não nos afirmamos exclusivamente assim. O principal mote, a cenoura que, à distância, me induz a caminhar em frente não pode ser só isso. Porquê? Fácil:

Senão a vida não teria graça nenhuma.

segunda-feira, março 22, 2004

Papões – Fazem parte do imaginário, da infância. Aqueles seres, monstros feiosos que atormentavam as noites com sonhos reais de ataques fortuitos. Com a idade, desaparecem e outras preocupações ocupam o seu lugar. Não quer isto dizer, no entanto, que passemos a estar completamente imunes. Aliás, confesso ter sido assolado recentemente. Menos não seria de esperar.

Depois de ver o Figo a cantarolar “menos ais, menos ais, menos ais” enquanto se barbeia só mesmo um pesadelo poderá ter lugar.

domingo, março 21, 2004

Arrogância – Esta coisa das interpretações dos filmes tem tudo a ver com a dos livros, ou da arte em geral. A mim, custa-me um bocado explicar porque gosto de determinada película. Às vezes pelo argumento, outras pela mensagem, outras pela imagem, outras pela música, os actores, enfim, tanta coisa.

O que é certo é que acontece muitas vezes eu gostar especialmente dum filme que se torna um gigantesco flop em termos de recomendação a outrem. Aconteceu com o “Blade Runner”, um Harrison Ford na flor da idade dirigido por Ridley Scott. Não que devesse uma explicação a alguém, se bem que, na altura, não me devo ter conseguido fazer minimamente entender ao Nuno. Nem me lembro se tentei convictamente. Porém, fica aqui uma tentativa.

O que é esse filme para mim? Sobretudo uma crítica à nossa mania humana de querer moldar tudo à nossa forma, de controlar, de estabelecer regras e impingi-las aos outros sem ter tido o cuidado de averiguar se lhes interessa de todo. O “pai” daquelas criaturas excepcionalmente capazes e inteligentes não se questionou se para elas isso custa o facto de terem uma vida curta quando comparada com os limitados humanos. A chama que arde com mais brilho tem de forçosamente consumir-se mais depressa, não há volta a dar, tenta ele explicar a um prodigioso Rutger Hauer revoltado com o facto de que nem junto do seu criador vai conseguir o seu milagre.

Quem somos nós para ocuparmos o lugar da Natureza ou Deus (riscar o que não interessa) e tomarmos decisões dessa magnitude?

quarta-feira, março 17, 2004

Futuro comprometido – A notícia atingiu-me como um raio, fulminante e devastadora. Explicou-me a senhora da Câmara onde resido e, depois, a senhora do Centro de Recrutamento da Avenida de Berna que, presentemente, estamos somente num regime de voluntariado; só serão feitas chamadas individuais na eventualidade de não haver um voluntariado suficiente e apenas para os mancebos que entenderem. O que, dada a minha formação universitária, à partida, deve ser o suficiente para dizer que estou excluído.

Seria bom que, quem de poder, revogasse esta decisão, abrisse os olhos. Afinal, trata-se do futuro de um mar de jovens que, como eu, se sentem agora, perdidos. Mas o pior, o pior de tudo, foi mesmo ter de encarar os meus pais. Tantas esperanças que depositaram em mim, tantas expectativas positivas para tudo, afinal, se esfumar.

Mãe, pai, é triste, mas há uma elevada possibilidade de que não venha a ser homem…

terça-feira, março 16, 2004

The end – Esticar o pernil, apagar-se, dar o peido mestre, ir-se, ir-se desta para melhor, patinar, lerpar, ir para a aldeia dos pés juntos, ir para a quinta das tabuletas, expirar, pifar, angelicar, bater a bota, dar o último suspiro, finar-se, falecer, morrer.

Que raio de final nos havia de ser destinado.

segunda-feira, março 15, 2004

Há cinco anos atrás, este texto saiu-me directamente para o teclado depois duma deslocação à capital. Já tinha, obviamente, utilizado os transportes públicos lisboetas, mas só agora o começava a fazê-lo com regularidade.

«Queira auxiliar-me – Rotunda. Entro e sento-me. Este é daqueles novos em que as carruagens são abertas e podemos ver até ao final do veículo. É manhã, cerca das oito e meia, hora em que a maior parte das pessoas se arrasta diariamente para o seu emprego, enchendo os transportes públicos de pensamentos soltos, projectos e ansiedades enquanto se preparam para mais um dia de trabalho. À minha frente está um possível jovem executivo, de fato cinzento com a recente moda de camisa amarela e gravata a condizer, pasta de pele na mão, olhando impacientemente para o relógio com aspecto de caro, provavelmente preocupado com um atraso. Usa gel no cabelo lustroso para fazer uma pequena popa, óculos enormes de armações azuis.

Picoas. Em pé, perto da porta, está uma mulher jovem, bonita, de cabelos pelos ombros e pele bronzeada, nos seus vinte e poucos anos, de óculos escuros e vestida mais casualmente. O dossier e os livros que carrega na mão levam-me a pensar que é estudante universitária. Depois tem aquela cara que o conhecimento dá à maioria das pessoas: um antagonismo entre orgulho e a estima pessoal pela sua valorização pessoal e o sentimento de supremacia em relação aos menos habilitados.

Queira auxiliar-me

Na outra porta, do meu lado esquerdo, estão dois adolescentes, em amena cavaqueira, discutindo jogos de computador. O que tem um enorme rabo-de-cavalo mostra uns discos ao outro, revelando todos os pormenores que fazem um jogo cativar a atenção, ser viciante e, como tal, altamente interessante. Também à esquerda, mas nos bancos, estão duas donas-de-casa que aparentam ter por volta de cinquenta anos. O tema da conversa é o filho da vizinha que, vejam só, o rapazinho que é filho de gente de bem e parece ajuizado, que tinha bons resultados nos estudos, tanto que até foi para a faculdade, para engenheiro, e agora anda lá metido com aquelas más companhias que o levaram para a droga. Uma pena.

Queira auxiliar-me com o seu auxílio

Saldanha. Apercebo-me de que vem das carruagens que estão para trás mas ainda não consigo ver de quem se trata. Sentado do lado esquerdo está também um tipo grande e gordo. Todo ele é um grande barril de cerveja com umas calças vestidas que, com a força de um estômago dilatado, parecem estar à beira da ruptura. Agoniza com a força do calor. Pela sua testa escorrem gotas de suor que ele tenta eliminar, mas escapam algumas que lhe percorrem a face, passando pelas enormes patilhas e pelo bigode, até atingirem o queixo e o pescoço.

Obrigado e felicidades para si e para os seus

Ouço o tilintar de moedas. Já está bastante próximo. Continuo a deambulação visual. Os meus olhos quedam-se num velhote que entretanto entrou aquando da última paragem. Veste umas calças beige, uma camisa de cor clara indefinida com manga curta. Carrega um pequeno saco escuro numa das mãos. Tem um olhar pensativo, triste e vago enquanto olha insistentemente para o relógio, como que lutando contra o avanço dos ponteiros, sofrendo com a engrenagem impassível de um único sentido.

Campo pequeno. Primeiro o ruído da bengala a embater em todos os sentidos, tacteando o caminho. Depois é que consigo vê-la finalmente, e o homem de pequena estatura, ligeiramente forte, com vestes gastas e velhas pelo uso frequente a que são sujeitas que faz uso dela. O invisual está a passar ao lado do meu assento prosseguindo a sua caminhada.

Queira auxiliar

Pára para receber as moedas de algumas pessoas que as depositam num recipiente cilíndrico com uma pequena abertura na parte superior. Depois deseja felicidades a cada moeda que ouve cair junto das outras que já se encontram no recipiente e segue, com o cabelo sujo colado à cabeça e a barba por fazer, os olhos revirados e a cabeça estática, em direcção ao final do veículo; os seus passos são curtos, incertos e cuidadosos.

Entre campos. Já passou por mim e está fora do meu campo visual. Desfeito o mistério, as suas palavras, o barulho da bengala e das moedas vão progressivamente deixar de ser captadas pelos meus ouvidos, à medida que ele se distancia. A minha atenção volta-se a focar em novas pessoas que entram e se sentam na sua migração diária. Todas as idades e quase todas as profissões estão ali representadas em rostos desconhecidos e distantes. Suspiro, bocejo e, simultaneamente, espreguiço-me. Pego na minha mochila, levanta-mo a custo porque estou ensonado e ando em direcção à porta.

Cidade Universitária. Saio.»

Depois de um hiato em que pouco andei de transportes públicos, recomecei a fazê-lo diariamente. E foi não sem alguma tristeza que constatei que, a situação que há cinco anos estava circunscrita, confinada, alastrou de tal forma que pouco provável é entrar numa carruagem em que não haja um invisual pedinte. Multiplicaram-se, cada um com a sua lenga-lenga personalizada; há, inclusivamente, um que canta enquanto percute um ritmo, batendo com um objecto metálico contra a sua bengala.

Hoje apeteceu-me falar deste assunto porque, antes de ter passado por mim um pedinte na carruagem, estava um invisual no apeadeiro, com aspecto de quem tinha acabado de sair do trabalho e que regressava a casa como a maioria das pessoas que ali se encontravam.

Somos nós que descriminamos estas pessoas e tornamos um deles que tenha uma vida normal numa excepção ou são eles que exploram a nossa comiseração?

domingo, março 14, 2004

Dear Elton John,

It’s very nice of you to include me in your song, it’s an honour, and I must tell you I’m really flattered, I even ran a search on the lyrics. Nevertheless, that doesn’t mean I don’t resent the fact that you’ve distorted the truth a “little bit”. Don’t know what I’m talking about..? Come on, Elton… Though I’ve flown to Spain, I don’t think it’s the best place I’ve ever seen. In fact, I don’t have a favourite place, all of them have good and bad things, and it’s the way life is.

And no (please, God, no!!) I’m not older than you!

sábado, março 13, 2004

O mundo é pequeno – Hoje regresso aos caminhos da religião. Não daquela religião a que normalmente associamos o termo e que suscita discussões filosóficas que nunca passam do plano abstracto. Estoutra a que me refiro, só tem graça se descer a um plano objectivo, concreto, material. Não obstante, tem inúmeras ligações com a primeira: também eleva determinados seres à categoria de deuses; tem a capacidade para nos levar ao êxtase, para produzir em nós comportamentos pouco ortodoxos, impulsivos e, até mesmo, claro está, as mais profundas contradições; pode-nos tirar o sono.

Passemos à fase descritiva desta curta narração.

Nunca ninguém me explicou porque raio as entidades sobrenaturais que governam este e o outro mundo são todas masculinas. Possivelmente, a mesma confusão aflige o herói deste relato. De tal forma o terá apoquentado que, certo dia, decretou ter, para si próprio, elevado uma pessoa à categoria de Deusa (a letra maiúscula é empregue para reforçar a dificuldade de acesso a esta categoria dada a exigência dos critérios para ela estabelecidos). Com um discurso frenético, acalorado, como não podia deixar de ser, colocou Sevilha no centro do mundo conhecido. O grande problema que a vida lhe colocava naquela circunstância precisa era o da tradicional inacessibilidade dos seres superiores: têm, regra geral, uma agenda e uma paciência terríveis.

Assim sendo, com estas hipóteses na mesa, chegou a altura de jogar a cartada que, a ter em conta a lógica, devia seguir-se. O tráfico de influências, o lobbying, desenganem-se, é prática a que todos recorremos. Bastou um conhecimento comum para, de imediato, o contacto tomar lugar. Porém, nem sempre as notícias trazem as informações que queremos ouvir. Disse a Deusa que era engraçado, o nosso herói tinha a mesma nacionalidade que o mais-que-tudo dela.

O facto do Desmancha-prazeres (aqui, uma vez mais, com letra maiúscula, dado o profissionalismo com que exercia esta função) ser aluno da concorrência ainda contribui para arrefecer mais o balde de água, já de si, fria. Mas, não foi por isso que a diversão não continuou a ser nota dominante até ao final da noite. E, mais à frente na estadia, correu outra notícia de grande importância. Parece que a Deusa estava novamente sozinha no monte de Olimpo. O Desmancha-prazeres tinha-se posto na alheta.

Estava estabelecido o caminho a trilhar. Agora, apenas a casa-de-banho era um verdadeiro obstáculo, digno desse nome.

Como conhecia o nosso herói o rosto do Desmancha-prazeres tão bem? Humildemente confesso que, mesmo tendo-o visto naquela noite em que nos deixou jornais e revistas nacionais, autênticas preciosidades naquela terra de bárbaros que não almoçam, não conseguiria reconhecê-lo se o visse novamente. Como aliás, não reconheci.

Reconheci, isso sim, no decorrer da conversa com os especialistas de recursos humanos, que tinha perante mim um homem modificado. Pessimista, rendido, conformado, só falou de problemas, a propósito da globalização, do alargamento da União e da política de taxa de juro do BCE. Engasgou-se, balbuciou, perdeu o fio à meada quando o convidaram a discursar durante três muito longos minutos. Não consegui deixar de sentir pena por aquela pobre alma perdida. É um sentimento recorrente quando nos apercebemos que alguém teve tudo na mão, o mundo por inteiro, e deixou que lhe escapasse como areia por entre os dedos.

Que almas andarás tu a converter para a tua religião nos dias que correm, ó Deusa?

quinta-feira, março 11, 2004

Fanatismo – Somos bombardeados com a associação entre fanatismo religioso e o islamismo. Habituamo-nos tanto a isso que parece algo natural, decorrente daquela crença em particular. Mas há sempre, no mínimo, duas perspectivas para cada realidade. Há dias, “O Público” referia-se a uma sondagem acerca das próximas presidenciais portuguesas e referiu dois valores estatísticos muito interessantes.

Quando interrogados se alguma vez elegeriam um presidente ateu, apenas 13% dos portugueses manifestaram ser essa uma condição incompatível com tal cargo. Este valor dispara para lá dos 50% no caso dos americanos. Num período da História em que se identifica democracia com a separação entre os poderes do Estado e da Igreja, atrevo-me a perguntar:

Afinal, quem é fanático?

quarta-feira, março 10, 2004

Arbitragem – Acho sobretudo piada àqueles que dizem que não se deve matraquear na arbitragem e procurar nos ditos a culpa própria dum bode expiatório. Normalmente produzem afirmações deste calibre em duas situações distintas: ou imediatamente a seguir a terem elaborado uma lista com todas as situações em que, porventura, o respectivo clube, nunca o adversário, poderá ter saído prejudicado; ou imediatamente antes.

Não sou a pessoa mais indicada para sequer aflorar este tipo de assuntos, não estou dentro da matéria o suficiente. No entanto, gostaria de perceber porque razão parece que estes ataques aos árbitros não deixam, de uma vez por todas, de existir. Talvez porque os treinadores, jogadores e dirigentes saibam perfeitamente que, ao colocar os homens do apito sobre pressão, podem conseguir algum benefício com isso. É vê-los em vésperas de jogos importantes a aplicar a estratégia da intimidação. Autêntica máfia.

Porque os árbitros fazem parte do jogo.

terça-feira, março 09, 2004

Papel – Longe vão os tempos em que distinção entre imprensa de referência e a de sucesos, como diriam os que hablán castelhano, saltava à vista pelo formato, tamanho do papel empregue. Os jornais que se queriam afirmar como sérios tinham de se apresentar ao público com uma broadsheet. Ou seja, os lençóis eram sinónimo de qualidade, atestavam-na.

Porém, o pragmatismo assim o exige, a pouco e pouco, os consumidores foram deitando por terra essas exigências de diferenciação pelo grande porte. Um Diário de Notícias tem agora o mesmo tamanho dum qualquer tablóide e continua a apostar em destacar-se como uma publicação de qualidade. Na cena portuguesa, ao que tudo indica, apenas um jornal permaneceu grande ao ponto de lhe pudermos dar uso como jogo de cama.

Porque será que o Expresso não acompanhou os outros? Possivelmente porque, enquanto essoutros saem durante a semana, altura em que a esmagadora maioria dos portugueses têm de exercer uma qualquer actividade remunerada ou estudar, não era nada prático ter de andar com um grande matacão debaixo do braço. Menos ainda, parar na rua ou no banco para o abrir, consumindo doses maciças de espaço no acto.

O semanário de Pinto Balsemão é comprado ao fim-de-semana. Os seus leitores lêem-no, normalmente, num dia que não é de actividade laboral: em casa, na esplanada, etc. Talvez por isso, a necessidade de ser mais prático não fosse tão premente.

Mas que continua a ser chato aquele tamanho de papel todo, continua.

domingo, março 07, 2004

O texto que se segue é da exclusiva responsabilidade dos seus intervenientes. Aborda a temática da religião numa perspectiva que poderá, eventualmente, ferir certas e determinadas susceptibilidades. Aconselho àqueles que poderão sentir-se incomodados com a sua leitura, que fechem de imediato esta página e não lhe ponham os olhos em cima. Se optarem por prosseguir, não me chateiem depois a cornadura. Eu sei que este tema é polémico, mas o país é livre assim como a opinião dos que nele vivem. Respeitem a minha, como eu respeito a vossa. Boa noite.


Remendos – Para um não crente, uma das coisas que gera confusão é aceitar a existência duma entidade superior associada ao mundo em que vivemos. Perguntei uma vez a alguém que teve a bondade para me explicar que, segundo corre, Deus deu a hipótese de escolha ao Homem e, por isso, não interfere nestas matérias de mundos injustos. Deu-lhe o livre arbítrio, a hipótese de escolher e, portanto, a responsabilidade de avançar por caminhos menos ortodoxos cabe-lhe exclusivamente. Deixa as coisas correrem, a crueldade, a injustiça, e tudo o mais que de mal por este mundo fora grassa, perpetuar-se com a naturalidade de quem semeia uma semente e espera ver o resultado.

Tudo bem, é uma posição, cada qual é como é. Eu pessoalmente, se tivesse o poder para alterar tudo o que de mal se passa neste mundo, acabar com as injustiças, com a miséria, as guerras, a fome, não hesitaria dois segundos sequer. Do meu ponto de vista, é o mínimo de moral, humanidade, compaixão, chamem-lhe o que quiserem, que assiste a um qualquer ser humano que se considere verdadeiramente gente. Enquanto Ele, que tem efectivamente o poder para mudar as coisas, não é apenas mais um peão deste tabuleiro de xadrez, opta por não o exercer.

Mas, ao mesmo tempo, dizem que Ele sabe tudo. Não se engana, escreve direito por linhas tortas, essas coisas todas. É incrivelmente bondoso e só quer que as coisas nos corram bem ao longo da nossa existência. E é aqui que a porca torce o rabo. Ora, se assim é, então, à partida, devia ter percebido perfeitamente, com uma lucidez que torna o mais opaco dos acontecimentos cristalino, que criar-nos, nestes moldes, à sua semelhança, iria descambar, iria dar uma grande bronca. Esta é a visão de Deus como uma entidade sádica que, através da sua omnisciência e mais todas as outras características começadas pelo mesmo prefixo, estava ciente do monstro que tinha acabado de criar e, mesmo assim, deixou-o avançar. Pior: passados todos estes anos, continua a não intervir.

A outra forma de resolver este problema é desculpar o sadismo com o recurso à negligência. Ou seja, partir do princípio que Ele se enganou. Acontece, pronto, é uma chatice, não podemos acertar sempre. Contudo, esta versão não tem graça nenhuma; deita por terra a omnisciência e as demais características que costumam vir-lhe, em catadupa, associadas. É afirmar a Sua incompetência, uma constatação que choca frontalmente com as hipóteses inicialmente avançadas. È uma espécie de redução ao absurdo.

Vou partilhar convosco um segredo meu. Costumo associar, ou melhor, visualizar religião como a parede duma barragem que, de velha, gasta, não interessa o motivo, está a desmoronar aos poucos, encontra-se periclitante, e a água só ainda não começou a escorrer pelas rachas que se abriram no betão porque há uma série de remendos colocados estrategicamente, que a vão sustendo temporariamente, por pessoas que têm tanto de coragem e de devoção, como de fé e de vontade de acreditar.

Qual será o segredo desse material isolante que impede o iminente desmoronamento?
Orientações – Hoje dirijo-me àquelas pessoas que, desde que se conhecem, sempre souberam aquilo que queriam fazer das suas vidas mas que, por esta ou aquela razão, não se lhes abriu o caminho para a concretização desse desígnio. É óbvio que é lamentável, é triste sentirmos a frustração, a raiva duma vontade que vai por água a baixo.

No entanto, alerto-vos e incito-vos a fazerem o raciocínio oposto. Imaginem aquele grupo de pessoas que nunca tiveram uma orientação muito definida na vida, nunca tiveram certezas daquelas que estão acima de qualquer suspeita e que, podendo efectivamente enveredar por uma série de trilhos, vêem-se constantemente em encruzilhadas de difícil opção, dilemas cáusticos, causadores de dores de cabeça intermináveis.

Pertenço, sem margem alguma para discussão, altamente distanciado, a este segundo grupo. E asseguro, a quem, eventualmente, possa dar abrigo a alguma dúvida, que também não é pêra doce. Aliás, atrever-me-ia a dizer que é possível que seja uma situação preterível porque, enquanto os primeiros têm um rumo definido e, mesmo falhando, sabem que trabalharam para determinado fim com toda a garra e afinco, que deram o seu melhor, eu sinto que por vezes, chego demasiado tarde. Como que rodeado por hipóteses que vagueiam, flutuam à minha volta e com receio de não ser capaz de produzir uma decisão no tempo certo, útil, suficientemente atempada para poder agarrar “aquela” opção. Que espero, com toda a esperança que consigo desenterrar de dentro de mim, ande por aí.

E é assustador. Porque o que não pode ser opção é resignar.

sábado, março 06, 2004

Cinemas – Dizia ela, algo escandalizada, refira-se de passagem, que nunca tinha visto nada assim. Curiosa, procurando toda e qualquer justificação para aquelas cadeiras diferentes, maiores, mais cómodas, com empregado e flutes de champagne, perguntou a um responsável da cadeia espanhola, seu conterrâneo, que conhece. Ao que sei, e ainda não visitei os cinemas do Corte Inglês, são os únicos em que este serviço existe.

Aparentemente, segundo disse o tal responsável, o português é dado a estas coisas, aparências, querer parecer bem. Está disposto a pagar o dobro do preço para estas regalias. Ou seja, em vez de cinco euros, paga dez. O que, para quem quer dar ares de abastado, desafogado, bem na vida, sem preocupações financeiras, não impressiona absolutamente nada.

O que impressiona verdadeiramente é este espírito tacanho, parvo, de nível baixito, chãozito.

sexta-feira, março 05, 2004

Nem de propósito falaste de chatos como o inimigo público número um, Gonçalo, seu grandessíssimo Tubaralho. Já andava para partilhar este texto. É mais comprido do que o habitual, mas vale a pena.

«O maçador – Aparentemente era um ser humano igual aos outros – primata e bípede –, mas com graves problemas de oralidade.

Não roçava impressões, impunha as suas; eternizava os assuntos mais enfadonhos; e não comunicava com o próximo: desidratava-o. Talvez fosse por esta última característica que era tão requestado pela polícia secreta: em casos de resistência à denúncia, era o único inquisidor que não precisava de utilizar punhos ou brocas para arrancar informações – sentava-se numa cadeira e dispunha-se a contar a sua vida.

Mas atenção que o Feliciano podia vestir duas roupagens distintas: ou falava incessantemente empolgado por tudo o que de acessório descortinava num tema – tipo soda –, ou não fazia mais nada do que grunhir monossílabos e exasperar-nos com a sua sensaboria e lentidão – tipo purgante. E qualquer destas facetas enervava as pessoas: ou porque não articulava palavra, e descia a pressão arterial aos interlocutores, ou porque não se calava nem à lei da bala, e enfartava os cardíacos.

Era conhecido no bairro.
Havia pessoas que, na impossibilidade física e moral de o suportarem, mudavam de passeio para o evitar na rua. Nada mais ingénuo: um maçador como ele não se ofendia com isso, mesmo que o pressentisse; pelo contrário: sentia-se estimulado. Não se esqueçam que da mesma forma que um comilão se compensa a devorar barbaridades, o maior gáudio do chato é assaltar-nos a horas inoportunas para exibir o seu talento, massacrando-nos.

E não havia fuga possível: perguntávamos-lhe pela saúde e ele lançava-se numa inventariação detalhada da sintomatologia de todos os seus achaques recentes, com os nomes em latim; indagávamo-lo sobre os filhos e ele era tão tremendamente egoísta que ia ao ponto de acreditar no nosso interesse e de se esmerar na resposta; esboçávamos uma despedida apressada, a olhar para o relógio e a transpirar de stress, e ele borrifava-se na falência de todos os nossos compromissos para teimar num passeio à beira-mar.

Era a viva imagem da morte, o Feliciano: ao lado dele o Mundo parava, o sangue gelava-se-nos nas veias, o sexo e o amor deixavam de contar, o dinheiro perdia o interesse, as oportunidades goravam-se uma a uma, Deus abandonava-nos e, de um momento para o outro, todas as nossas funções biológicas cessavam. E o desespero chegava quando, à frente de um tabuleiro de chá, lhe perguntávamos por cortesia: «É servido?» «Bom, não é que tenha fome…», para o vermos abarcar por desfastio e apoderar-se sem dó nem piedade da torradinha do meio.

Há muitos como ele: «bricoleurs», instrutores de condução, engenheiros, coleccionadores, lentes da faculdade, militares de carreira, genealogistas, velejadores, mães babadas, bêbedos, linguistas, agricultores, metralhadores de anedotas e hipocondríacos, embora o chato mais em voga seja hoje o não-fumador.

E, como bom chato que era, Feliciano tinha a paixão dos hábitos: separava na véspera a roupa que ia vestir, desenhava nas paredes da garagem o perfil das ferramentas, jogava no totobola sempre com a mesma chave, dobrava o lenço em quatro a seguir ao escarro, escrevia para os ministros cartas de sessenta e duas páginas a denunciar os cocós de cão, descascava as uvas, conferia as contas dos restaurantes até o convidado desmaiar, obrava a horas certas para educar o intestino e fazia amor às sextas-feiras, de quinze em quinze dias, estivesse quem estivesse em casa.

A convivência com chatos como o Feliciano pode ser tão nociva para o nosso equilíbrio físico e mental que três das maiores instituições do Mundo já alertaram a humanidade para os riscos de contágio: a Organização Mundial de Saúde preveniu que a angústia que um chato provoca degenera as células, o Vaticano anunciou para breve a anulação dos casamentos para cônjuges molestados e a ONU viu-se obrigada a emitir um comunicado exortando os civis de todo o Mundo a capturá-los vivos ou mortos e a entregá-los às autoridades dos respectivos países. A ideia é isolá-los numa reserva murada para pôr cobro à epidemia – independentemente da língua, raça ou credo – e, segundo fontes segurar, foi a Suíça que, registando o maior número de infectados, ganhou o ano passado o concurso internacional lançado pela AMI para o seu acolhimento.

Coitado do Feliciano. Foi caçado por uma multidão descontrolada que o quis linchar, mas, tendo escapado com vida por lhe terem concedido uma última vontade, ou seja, ter escolhido contar uma anedota que adormeceu os captores, acabou por encontrar felicidade em Berna, onde existe um mandado de prisão para quem se ri depois das onze da noite e pena de morte para os que fazem amor a um ritmo desencontrado dos ponteiros do relógio.»

In “Os cromos de Rita Ferro”, Rita Ferro

quinta-feira, março 04, 2004

Glutões – E agora, no seguimento do último texto, passando da vida e interesse públicos para os privados, qual a motivação da bisbilhotice no campo desta última? A piada fácil, o escárnio, dirão alguns. Em certa medida, bem entendo, não sou nenhum puritano, é óbvio que também solto as minhas gozações de tempos a tempos.

A coisa já me custa mais a compreender quando, e aqui os exemplos abundam no campo estritamente afectivo, amoroso, os curiosos a sério, aqueles que têm, inclusive, carteira profissional quase esperam que falemos da nossa vida com um à-vontade ou despudor que eles próprios não me parece que possuam. Têm uma ânsia em absorver situações e acontecimentos de natureza alheia como se delas dependesse a sua própria vida. São uma espécie de Glutões do Presto do parceiro do lado.

O que não é lá muito compreensível. Porque, de todo esse manancial de vivências, há uma boa dose que tem um carácter, um cunho tão incrivelmente pessoal, que não faz sentido fora dos intérpretes da história, fora daquela relação em concreto. Querer, ousar contar a outra pessoa é como tentar matar moscas com uma carabina. Não há palavras que expressem todos aqueles sentimentos. Assim como, quando queremos contar uma qualquer desventura que se passou num local, numa situação e com pessoas que o destinatário não conhece, tudo se complica. Experimentei esta sensação sempre que falei de Maastricht com alguém que não teve lá.

Mais interessante é aquela tentativa de querer dar a entender que não partilhar os “segredos” é má política, que contribui para o cinzentismo interno e amorfo dos que não dão com a língua nos dentes. O equilíbrio mental de cada um é com cada um. Aqueles que se sentem bem falando, força.

Agora, querer fazer sentir mal os que são diferentes é que não lembra ao diabo.

quarta-feira, março 03, 2004

Inimigo público – De que semente brotará todo esse ódio, é a pergunta que coloco. Por um lado, é fácil de responder se atentarmos à nossa natureza inquisitória, a vontade de saber o que se passa à nossa volta. É, simultaneamente, um direito e um dever enquanto cidadãos estarmos ao corrente da forma pela qual vamos sendo governados e dos acontecimentos que marcam a actualidade nacional e internacional, num esforço de tomada de posição, de criação de opinião.

Contudo, não é só neste campo que queremos ver a esta nossa natureza satisfeita. E é aqui que entra o reverso da medalha. Será, talvez, uma certa dose de curiosidade, mais ainda, de voyeurismo, que justifica a proliferação de notícias que, sendo bisbilhoteiras, nada têm para nos oferecer em matéria de informação que verdadeiramente cumpre os requisitos de formação de opinião. Assim como de todos os serviços noticiosos que fazem apanágio deste tipo de “jornalismo”.

E afinal, para quê? Para combater aquele que é um dos maiores inimigos públicos da população mundial dos tempos que correm e dos imediatamente antes. A par de outros, como o terrorismo, a baixa eficiência da administração pública, o presidente dos EUA, o stress e o colesterol. É verdade, que grande guerra que lançámos contra o segredo, de tal forma que já nem sabemos onde está o limite do que é relevante, interessante.

Os jornalistas quase se tornaram especialistas em batalhas e tricas na sua saga pelo apurar da verdade. Que, por vezes, assume contornos de extorsão. E, por vezes, esbarram contra outras instituições que são tão basilares numa democracia como a própria liberdade de impressa: o segredo de justiça, de Estado e os direitos à vida privada e à não devassa.

Se calhar, não é mais do que a transposição para os tempos modernos duma característica intrínseca da nossa espécie. Ou não fossemos nós aqueles que sempre delirámos por saber os pormenores mais macabros do tipo que mora na porta ao lado, a saber, quanto ganha, quem mete na cama, quanto perdeu no jogo, como é a amante dele.

Nunca se esqueçam que o “24 horas” e os da laia dele existem porque há quem compre.

terça-feira, março 02, 2004

Hábitos – É vê-los na auto-estrada, fazendo sinais para que desimpeçamos a faixa da esquerda quando tentamos fazer uma ultrapassagem; assim que apanham estrada livre, aceleram muito para lá do limite legal.

É vê-los a exercer funções em algum organismo público, tentando tirar daqui ou dali, onde possível, procurando tachos ou, simplesmente, estratagemas para “compor o ordenado”, uma figura generalizada.

E é ver a expressão que trazem na cara quando alguém se interpõe entre eles e o seu objectivo, como quem foi vítima duma impertinência. De que direitos se arrogam estas pessoas? A indignação é tanta que devem estar consagrados na Constituição. Quando tudo é permitido, é muito difícil voltar atrás, restringindo a libertinagem.

Old habits die hard, diriam os anglo-saxónicos.

segunda-feira, março 01, 2004

Insólito - A chuva, quando cai, é para todos...